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Opinião | Felicidade e falta de tempo

Nov 06, 2018

Se pudesse adquirir tempo ou bens materiais, o que escolheria? Artigo do juiz federal José Eduardo Leonel nos faz pensar sobre a maneira como vivemos atualmente

Pesquisa da Universidade de Columbia, Reino Unido, e outra, que consta de um artigo na revista  Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS-edição de julho de 2017) mostraram que são mais felizes as pessoas que podem usar dinheiro para obter tempo livre do que as que o usam para comprar bens.

Sinceramente, causa espanto a destinação de verbas para pesquisa que chega a uma “conclusão” que a humanidade conhece, de cor e salteado, desde Sêneca, há dois mil anos.

A pesquisa deu 40 dólares para um grupo de pessoas “comprar tempo” (arrumar, por exemplo, uma pessoa para ajudar um pouco em tarefas domésticas) e outro mesmo tanto de dólares para o outro grupo comprar bens materiais. Como era de se esperar, quem “comprou tempo” ficou mais feliz que os compradores de bens.

senecaSêneca, filósofo romano, apontava que o enriquecimento, seja ele pequeno ou grande, traz mais possibilidades de dano emocional do que a mera estabilidade financeira, mesmo que este equilíbrio penda para a pobreza. O momento de aquisição da riqueza, às vezes rápido, outras vagaroso, traz um ganho sentimental pequeno perto do medo constante, permanente, de perda do que se adquiriu.

Não é difícil encontrarmos provas vivas de que Sêneca e os demais filósofos estoicos estavam cobertos de razão. Nos dias de hoje, então, ficou mais fácil ainda identificar aquele parente que atende o celular de cinco em cinco minutos, inclusive durante as refeições (deveria gerar escândalo isto. Mas, eu sei, sou minoria nesta repulsa...), respondendo ou perguntando sobre o valor de carros, casas, ações, seja lá o que for.

Com a dependência psicológica do celular se tornando tão frequente, ficou fácil desmascarar o escravo da riqueza, um tipo de cidadão que sempre existiu em percentual expressivo em todas as comunidades humanas.

Também são torrenciais as pesquisas apontando que, a partir do alcance de determinado patamar de rendimentos, no qual há uma razoável despreocupação com a sobrevivência, o índice de felicidade das pessoas permanece inalterado, para cima e para baixo, para o resto de suas vidas.

Embora de forma um tanto “en passant”, posso ousar dar minha visão sobre este assunto, embora tenha noção de que este ponto de vista é, ao cabo, mero resultado da soma dos textos estoicos. E esta visão parte do princípio de que todas as atividades intermediárias são, na maior parte das vezes, as que trazem, junto com seu inerente senso de inutilidade, a infelicidade.

Resumiria assim: ou trabalho ou me divirto. Tudo que não pertence ao seu ofício, nem ao seu leque de atividades que te divertem é um pouco de morte que se infiltra, todo santo dia, pelas frestas de sua vida.

Tempo e felicidade

Quarenta minutos de trânsito, vinte minutos solicitando cartão de crédito ao telefone, quinze minutos na fila da farmácia. Parabéns, neste dia, o de hoje, você morreu por uma hora e quinze minutos. Assim, se você for viver oitenta e dois anos, dois meses e duas horas, temos de reformular a conta, pois você efetivamente viveu oitenta e dois anos, dois meses e quarenta e cinco minutos, subtraindo uma hora e quinze daquele dia acima mencionado.

 

Munido deste raciocínio, conte quantos minutos, na verdade horas, nas quais você pratica “atividades-meio”, nas quais “morre” por dia. No final de contas, você terá “morrido” por anos e anos, mas será muito pior do que se você tivesse morrido antes no sentido literal da palavra (ou seja, morrido aos setenta e dois e não oitenta e dois anos). Será ruim porque estes momentos de inutilidade e infelicidade intermitentes – vão e voltam o dia todo – interferem na felicidade como um todo. Se eles (estes episódios inúteis) forem muitos, um grave senso de inutilidade se acumulará durante os anos.

Geralmente, quem tem alguma riqueza passa horas a fio por dia pensando em coisas intermediárias que não são exatamente trabalho, mas sim exercícios comportamentais que visam minorar seu medo constante de perder o que adquiriu.

Não é à toa, portanto, que tanto os estoicos quando os budistas e adeptos dos movimentos que pregam a simplicidade aconselhem também a indiferença aos bens materiais. Há doses monumentais de sabedoria por trás deste tipo de pensamento. Sêneca atentava para a perenidade da prática dos bons atos, contraposta à perda sempre possível do que materialmente se adquiriu.

Há uma conspiração cruel da tecnologia com nossos cérebros neolíticos para nos levar à infelicidade. Em uma vida curta, em média de trinta anos (como há de dez mil anos), a satisfação imediata dos sentidos tinha de ser valorizada.

Afinal, como dar estímulo para que o sujeito queira continuar vivendo e espalhando seus genes se ele não tem prazer imediato algum com o que faz? Grifo “imediato” pois de nada adiantaria nosso cérebro estar estruturado de forma a pensar a longo prazo se a morte sempre vinha cedo.

Por esta razão evolutiva que as compras dão tanto prazer na hora em que são feitas e depois, não raramente, se transformam em um fardo permanente. Obter patrimônio tem efeito similar. Tudo isto não fica distante, ainda, de se empanturrar de comida, algo que nos dá preciosas células de gordura do ponto de vista do neolítico e que só envergonham seu portador nos dias atuais.

Não é o caso de se dizer que a eliminação destes momentos intermediários do cotidiano significaria o fim de nossos problemas, pois ainda temos que lidar com o vazio existencial, com a falta de sentido da vida.

Mas a felicidade é um estado mental que possivelmente não existe e, se existisse, provavelmente pouca gente a mereceria. Escrevo sabendo que me incluo, certamente, entre a maioria esmagadora, desmerecedora.

Soa incrível tantas pessoas se acharem merecedoras de uma vida boa e feliz. O ser humano médio costuma ser, ainda que em doses oscilantes (quase sempre com variações “para baixo”, diga-se), mesquinho, invejoso e, acima de tudo, egoísta. O cidadão ainda quer ser feliz? Assim?

A maldade – que, claro, ao contrário do que a esquerda prega, existe – não assume, na realidade, as características expostas nos filmes e seriados americanos. Ela é rara e mais conhecida como sadismo. O que é universal é o egoísmo.

Como falar de forma mais concreta sobre este tema? Falando da indústria de entretenimento e conceitos abstratos como felicidade e maldade. Nela, evidentemente, uma produção de cinema ou televisão tem de extremar os comportamentos para que o filme/seriado atraia as pessoas.

felicidade

A vida comum, como tudo que é ordinário, é enfadonha, entediante até não mais poder. Estão aí, concorrendo para o tédio, os que nomeei momentos intermediários, coisas sem sentido que você deve fazer para participar da engrenagem chamada civilização (é, até certo ponto, a tese central de Freud em “O mal-estar da civilização”).

Não é por outro motivo – narrativas pretensamente “reais” – que os filmes do neorrealismo italiano e do realismo poético francês conseguem ser ainda mais insuportavelmente monótonos que a pretensiosa “nouvelle vague” francesa (com as tomadas longas e inexplicáveis do incensado Godard, um chato daqueles que se incorporaram ao imaginário popular como um “incontestavelmente artista”. Que seja. Um artista. Um artista chato).

Também a felicidade é retratada de uma forma totalmente irreal nos meios de entretenimento, e tem de ser assim mesmo. De realidade, já chega a própria. Queremos o extraordinário, o incrível, muitas vezes o bizarro. Tudo, menos a retratação da vida. Sobre ela, como diria o jornalista Paulo Francis (1930-1997), com uma afirmação tão esnobe quanto verdadeira, “tão pouco tempo, tão pouco o que fazer”.

Continuando no campo das artes, é impossível deixar de lembrar que a literatura, como arte específica, tem campo muito maior de possibilidades para se flertar com o que é real, vivo. Ao ler, imaginamos as coisas, todas elas, aparência, imagens, cores, sons, não temos a estória mostrada como no cinema. Não que a boa literatura seja espelho da realidade. Nunca é, mas pode parecer, a depender do moldador da língua em questão.

Muitas vezes, a literatura conta o que parece ser um trecho da “realidade ela mesma”, como ocorre, por exemplo, nos escritos de Ernest Hemingway (1899-1961) e Raymond Carver (1938-1988), belíssimos exemplos de relato que uma realidade “nua e crua”, até brutal mas que, no fim das contas, representa a mesma simplicidade de uma pedra já lapidada de diamante, na qual não se imagina o esforço antecedente; como o de uma partitura de Mozart, com seu falso despojamento.

No Brasil, temos um exemplo e tanto. O genial escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) escreveu para o jornal “Última Hora”, com enorme e merecido sucesso, uma coluna diária chamada “A vida como ela é” (depois filmada para cinema e televisão) que, apesar do título,  é um exemplo acachapante de como o que interessa ao ser humano é extraordinário, o que não ocorre todos os dias.

 As situações retratadas por Nelson Rodrigues são extraídas do cotidiano, sim, mas não são, de forma alguma, cotidianas. São exemplos extremos de perversidade, adultério, satiríase, incesto, heresias e quejandos. Nesta intensidade, estes fatos não são parte do nosso dia a dia, não são comuns, ao menos não naquele ritmo frenético imprimido por nosso dramaturgo maior.

A vida normal de um cidadão inclui dezenas de momentos entediantes, em que a burocracia, o formalismo e, principalmente, a tecnologia, lhe roubam. Usando de novo até um certo radicalismo linguístico, podemos dizer que os momentos intermediários não são vida, são morte.

Tinha razão Oscar Wilde. A maioria esmagadora das pessoas apenas existe. Poucos vivem.

josé eduardo leonel
Sobre o autor
 - juiz federal em Jundiaí, juiz convocado no Tribunal Regional Federal da 3ª. Região por oito anos, professor licenciado de Direito na Faculdade Autônoma de Direito (FADISP), possui doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2006), sendo mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Atua na área de direito, com ênfase em direito penal.

 

A REPRODUÇÃO DESTE ARTIGO É PERMITIDA DESDE QUE DEVIDAMENTE CREDITADA AO AUTOR.

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