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“Caros Amigos” e o jornalismo literário

Jan 04, 2006

O artigo identifica os principais elementos e características que constituem a grande reportagem e procura compreender por que, no jornalismo contemporâneo, a narrativa de longo fôlego é uma prÃ

A matéria básica que alimenta o jornalismo é a notícia, definida classicamente como o relato do cotidiano que pretende responder rápida e superficialmente às indagações “que, quem, quando, onde, por quê e como”; ou, como bem pontua Nilson Lage, “entre os gêneros de textos correntes nos jornais, a notícia distingue-se com certo grau de sutileza da reportagem, que trata de assuntos, não necessariamente de fatos novos” (2001: 51). Uma visão da atividade jornalística, inspirada principalmente na escola norte-americana, definiu ainda que essa notícia deve ser escrita na forma de “pirâmide invertida”, estabelecendo ordens e hierarquias da informação, com os fatos principais aparecendo logo no primeiro parágrafo (o “lide”), com todas os outros elementos sendo organizados seguindo essa lógica estrutural. Essa foi a fórmula consagrada pelas grandes agências de notícias internacionais, mais enfaticamente a partir das duas grandes guerras mundiais. Aos poucos, espalhou-se pelo planeta e contaminou os diversos veículos, em distantes e diferentes países, tornando-se a tendência hegemônica.

Trabalho recentemente desenvolvido por Leandro Marshall nos mostra que esse modelo é uma conseqüência direta e imediata da então emergente sociedade de massas e de consumo, que precisava criar antídotos contra a singularidade – entendida como as marcas de identidade de cada repórter e texto –, para eliminar os “humores” e “opiniões” de um processo que, naquele instante, começava a deixar de lado seus elementos “boêmios, ideológicos e revolucionários” e passava a ser essencialmente empresarial e mais “técnico”, visando essencialmente às grandes vendagens e o lucro. Diz o pesquisador:

esta arquitetura da pirâmide invertida pode ser encontrada diariamente nas edições dos principais jornais mundiais, já que seu método é considerado praticamente como um processo único, elementar e indiscutível do fazer jornalístico. A pirâmide também tem sido a fórmula quase exclusiva de alfabetização jornalística utilizada pelas faculdades de jornalismo do mundo ocidental. Adorada e idolatrada mundialmente por professores funcionalistas, a pirâmide invertida constitui-se numa verdadeira bíblia para a catequização dos jornalistas, que perdem assim a perspectiva crítica do papel social do profissional da comunicação (...) O lead serve, assim, muito mais para esconder do que para revelar. [1] 

Vale destacar que o problema que aqui se aponta não é a “invenção” e a existência do lide, um importante elemento do jornalismo, mas o fato de se imaginar que ele pode ser executado sempre da mesma forma, tal qual uma fórmula infalível e robotizada. Seguindo a velha e batida lógica de que “tudo que é bom para o mundo desenvolvido, em especial para os Estados Unidos, deve ser bom também para o Brasil”, essa camisa-de-força estilística e ideológica desembarcou em território brasileiro a partir da década de 50, com as reformas promovidas por Danton Jobim, Pompeu de Souza e Luís Paulistano no “Diário Carioca”, e rapidamente incorporadas pela “Tribuna da Imprensa”, “Última Hora” e “Jornal do Brasil” – todos estes veículos cariocas. O modelo demorou um pouco mais de tempo para atingir e invadir os diários paulistas, e o fez a partir dos anos 70, deixando explodir sua força e vigor na década de 80, com a concretização do “Projeto Folha”, que, bem-sucedido sob o ponto de vista empresarial e mercadológico, acabou servindo como exemplo e referência para a maior parte dos outros periódicos nacionais. É José Arbex quem nos conta que essa “nova” proposta editorial idealizada pelo jornal “Folha de São Paulo” foi a responsável por implantar no Brasil, e em ritmo acelerado, “uma lógica empresarial que a moderna imprensa capitalista construiu ao longo de várias décadas nos Estados Unidos e na Europa” (2001: 141). Ele afirma que, desde o início,

o “Projeto Folha” caracterizava a notícia como mercadoria, destinada a gerar lucros. Essa perspectiva exigia, obviamente, o fim da “politização” da redação, uma das características mais fortes do jornalismo até então praticado no Brasil. (2001:142)

A pasteurização e a homogeneização do noticiário e de seus enfoques são as conseqüências diretas e imediatas do processo de mercantilização da notícia. Além disso, o jornalismo sofre de uma dinâmica crescente de empobrecimento da linguagem e dos recursos narrativos que utiliza. Escrever uma matéria, hoje, está longe de ser uma tarefa de apurar, pesquisar, ouvir, entrevistar, pensar, criar, ousar e depois “brigar” com o texto, imaginando seus caminhos, suas linhas de condução. Não se pensa mais na melhor maneira e momento de apresentar uma idéia, na história ou no personagem, nas relações e interconexões entre os fatos e suas causas, em conseqüências e desdobramentos, no “abre” ou introdução da reportagem, de onde quero sair e aonde desejo chegar, qual a mensagem que se pretende passar, qual a margem de interlocução que deixamos para o leitor, como podemos criar e escrever sem que sejamos autoritários ou donos da verdade. Não se pensa em coesão e articulação, em como saltar de um parágrafo a outro sem trancos ou rupturas de narrativa, em ritmo ou fluência, não se reserva espaço para a criatividade e a ousadia. O jornalismo literário, presença marcante em outros tempos de nossa história, acabou perdendo espaço para o chamado “jornalismo moderno”, onde, segundo já alertava Perseu Abramo,

o todo real é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus antecedentes e de seus conseqüentes no processo em que ocorrem, ou reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados. Esse padrão também se operacionaliza no “momento” do planejamento da pauta, mas, principalmente no da busca da informação, na elaboração do texto, das imagens e dos sons, e no de sua apresentação, na edição. (www.fpabramo.org.br)

Ciro Marcondes ajuda a completar o raciocínio:

O jornal restringe o número de termos de seu uso diário através de manuais de redação, que, mais além, passam a funcionar na cultura e na sociedade em que são hegemônicos como fontes normativas da linguagem efetivamente falada ou escrita. O linguajar jornalístico enterra a experiência viva, individual, no clichê (...) A substituição do texto jornalístico clássico (compreensão e redução lingüísticas) trata da extensão da matéria publicada: privilegia-se a notícia curta, de três parágrafos, e o processo da produção de notícias dá mais espaço aos drops informativos em detrimento das matérias grandes. Mesmo as matérias mais extensas de três quartos de página, página inteira ou dupla são contaminadas por esse processo, pois não são construídas linearmente do ponto de vista narrativo, mas pela aglutinação de fragmentos. (2000: 44)

Esse cenário, como aqui já foi dito, era bastante diferente há cerca de três décadas. Houve um tempo em que a reportagem de longo fôlego, representante maior do jornalismo literário ou interpretativo, se fez presente e foi referência no jornalismo brasileiro, empolgando toda uma geração de profissionais e leitores. Para o grupo de jornalistas reunido pela revista “Realidade”, na década de 60 do século passado, perguntar era fundamental e o primeiro passo para a construção de textos jornalísticos que namoravam com a literatura e que buscavam a inovação e a experimentação, rompendo com os padrões estéticos do realismo fundamentalista e da objetividade. Escreve J. S. Faro que

Realidade deu vida textual a esse conjunto de problemas. A leitura das reportagens que publicou permite identificar um sentido hegemonicamente revelador na investigação jornalística que conduzia sua produção para além dos limites da linguagem convencional da imprensa: no confronto com a materialidade das questões que seus profissionais abordaram, os recursos discursivos da revista resvalaram para formas literárias e ficcionais da narrativa que ampliaram sua penetração junto ao público leitor, transformando-a numa fonte de conhecimento e de disseminação dos novos padrões culturais da época em que existiu (1999: 13-14)

Mais do que uma revista que conseguiu captar, transportar e fazer sua leitura dos sentidos e significados de seu tempo histórico, “Realidade”, lançada em 1965 e que chegou a vender mais de 500 mil exemplares, soube também criar um estilo de dizer e escrever e reportar, que ficou conhecido como grande reportagem, ou reportagem literária. Nesses relatos, “a regra era a do estilo pessoal e a da “experimentação estética” e sensorial”. (FARO, 1999: 90). Em todas as suas edições, fica evidente a constante preocupação com as pautas, seus enfoques e angulações, a recusa ao imediato, o tratamento literário e estilístico dos textos, a amplitude dos temas abordados, a fuga daquilo que é presente e factual, a colocação da discussão dos grandes temas nacionais, a busca de personagens do cotidiano, os perfis humanizados, a construção de uma boa história, as grandes e longas entrevistas, a valorização da figura e da presença do repórter e o respeito ao estilo e modo de escrever e reportar a realidade, os tão falados “textos de autor”. A grande reportagem de “Realidade” seduz, cativa, instiga, emociona, faz refletir, levanta a polêmica, transgride, informa, forma, contextualiza, “puxa pelo pé e pelo coração”. Sem medir esforços, seus repórteres bebem na fonte do Novo Jornalismo Norte-Americano, nas minas d’água de Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote, John Hersey e Gay Talese, para construir as diversas narrativas da realidade.

Ao comentar as portas abertas e escancaradas por esse “new journalism”, o próprio Tom Wolfe não esconde seu encantamento, e escreve que

o que me interessou não foi somente a descoberta de que era possível escrever artigos muito fiéis à realidade empregando técnicas tradicionalmente próprias do romance e do conto. Era isso...e mais. Era a descoberta de que, em um artigo, no jornalismo, se poderia recorrer a qualquer artifício literário, desde os tradicionais diálogos de um ensaio até o monólogo interior, usando muitos gêneros diferentes simultaneamente, ou dentro de um espaço relativamente curto... para provocar o leitor de uma forma cada vez mais intelectual e emotiva.(1976: 26)

A crise das narrativas jornalísticas contemporâneas dá origem a uma dinâmica que o sociólogo francês Pierre Boudieau classifica como “produção circular da notícia”, onde um veículo de comunicação copia o outro, e que tem como resultado final noticiários idênticos e enfadonhos, a chamada “mesmice” jornalística, responsável por afastar o leitor das páginas de jornais e revistas. Em contrapartida, esse mesmo processo dialético parece ser responsável por uma espécie de movimento rebelde de reação, que promove a redescoberta do jornalismo literário, ainda que nesse momento esse reencontro aconteça de maneira tímida, sutil, desarticulada e difusa. Nos cursos de jornalismo, livros-reportagem são uma das opções preferidas dos estudantes que desenvolvem Trabalhos de Conclusão. Editoras como a Geração, a Record e a Companhia das Letras têm investido com muita ênfase na publicação de livros que consagram o gênero do jornalismo literário, com boa repercussão e vendagem. Nessa perspectiva, a revista “Caros Amigos”, lançada em abril de 1997 pela editora Casa Amarela, surge como uma das boas novidades em termos do recente diálogo entre jornalismo e literatura. Seria uma espécie de “oxigênio revitalizador”, um contraponto à atual produção feita pela grande imprensa. 

A análise das reportagens publicadas pela revista – seja sobre os sem-terra, as mulheres do Islã, a guerra contra o Iraque, a favela de Heliópolis, a morte do prefeito de Campinas ou a respeito das manifestações anti-globalização – faz saltar aos olhos, de maneira muito cristalina, a capacidade singular que a revista tem de contar e narrar boas histórias. Ao invés do consumo fácil, a fruição reflexiva – e namorada, portanto, do jornalismo interpretativo. O jornalismo por ela concretizado não se deixa pasteurizar ou tornar-se monossilábico, e nos convida a um banquete plural, um encontro com os textos e estilos de cada autor.

“Caros Amigos” não exclui a linearidade, na medida em que, enquanto processo comunicacional e jornalístico, se propõe a transmitir informações e a responder, em algum momento, às seis perguntas clássicas (o que, quem, quando, onde, por que, como). Mas ela não acredita que essas respostas devam aparecer sempre da mesma maneira, na mesma seqüência, sem coesão ou articulação textual, apenas para cumprir tabela; por isso mesmo, toma essa necessidade como ponto de partida e a supera por perceber, intuitiva ou conscientemente, que apenas a linearidade já não basta nem é mais suficiente para captar, compreender e narrar a universalidade e a intensidade dos sentimentos e emoções humanas. É nesse momento que entra em cena a reportagem, expressão máxima e agora revigorada e revisitada da nova-velha forma de se fazer jornalismo literário. Como bem lembram Cremilda Medina e Paulo Roberto Leandro,

enquanto a notícia fixa o aqui, o já, o acontecer, a reportagem interpretativa determina um sentido desse aqui num circuito mais amplo, reconstitui o já no antes e no depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal, ou menos presente. (MEDINA & LEANDRO in PEREIRA LIMA, 1993: 25)
 
Na mesma linha de raciocínio, Graça Caldas afirma que

é da diversidade, do debate, da apresentação de diferentes versões, da contextualização, da observação atenta dos fatos e das circunstâncias e causas que levaram ao fato que se pode contribuir para a formação da opinião pública. Chega de jornalismo declaratório e oficial. Por mais que um telefone seja útil na apuração de uma matéria, principalmente no sufoco do fechamento, nada substitui a observação direta dos fatos, que ainda assim se constituem, não podemos nos enganar, numa versão da realidade. Nosso compromisso com o leitor é oferecer múltiplos olhares, para que ele, o leitor, consiga formar sua própria opinião e atuar como sujeito da história. Só assim será possível o exercício de um jornalismo crítico, analítico, interpretativo e cidadão. [2]

Para complementar esse raciocínio, vale citar Dimas Künsch, quando este se refere às reflexões feitas por Ricardo Kotscho, para quem

a grande reportagem rompe todos os organogramas, todas as regras sagradas da burocracia – e, por isso mesmo, é o mais fascinante reduto do jornalismo, aquele em que sobrevive o espírito de aventura, de romantismo, de entrega, de amor pelo ofício. (KOTSCHO in KÜNSCH, 2000: 106)

As avaliações feitas pelos personagens que são os protagonistas do projeto “Caros Amigos” também são importantes para nos auxiliar nesse mergulho de compreensão sobre as reportagens publicadas pela revista, e nos revelam de maneira mais clara de que maneira a revista procura contemplar a perspectiva e a prática do jornalismo literário.

Para Sérgio de Souza, a revista sempre teve a vocação para a reportagem. Ele diz que

nem estamos publicando tantas reportagens quanto gostaríamos. Acredito que exista um público desejoso de reportagens, como em qualquer lugar do mundo. Não acredito que as pessoas não gostem ou não tenham tempo de ler, como se apregoa hoje em dia. As editoras de revista que defendem essa tese estão, na verdade, voltando seus investimentos para matérias ligeiras por duas razões principais. A primeira é ideológica: elas não estão preocupadas com a cidadania, e sim com consumidores. A segunda é de ordem econômica: como o que lhes interessa é primordialmente o lucro, não se dispõem a investir em reportagem, um gênero de jornalismo de alto custo. [3]

Marina Amaral não poupa críticas aos veículos da grande imprensa. Ela afirma que, antes, havia muito mais preocupação e capricho com o texto e a linguagem.

Mas essas coisas se perderam. Hoje, usa-se sempre um texto curto e fácil, simplista. Muitas vezes recorre-se à “fórmula Veja”, que tanta trazer todas as informações sobre um determinado tema e encerrar o assunto. Com isso, você se torna impositivo, não questiona, e aí se cria uma única realidade possível. É por isso que a gente investe no sentido contrário, na reportagem e nos textos de autor. E eu não estou falando apenas das grandes reportagens. Acho que um dos desafios da revista é justamente pensar pautas e reportagens pequenas e redondas. [4]

José Arbex lembra que, num mundo jornalístico regido pelo tecnicismo dos manuais de redação, que determinam número de toques, de linhas e tamanhos dos parágrafos, é fundamental recuperar o texto de autor, a narrativa, a história. Para ele, “Caros Amigos” não está inventando a roda, mas apenas querendo exercitar o pluralismo de idéias e o debate democrático.

Existe espaço para a reportagem, tanto do ponto de vista de leitor quanto da quantidade e vontade das pessoas que querem trabalhar com ela. É uma coisa que atrai muito. Quando você mostra que existem várias camadas de Brasil, e as pessoas só conhecem a superfície, existe um entusiasmo muito grande em conhecer o restante. Saber contar histórias ainda fascina as pessoas. O ideal seria que a reportagem fosse o carro-chefe da revista, mas ainda não temos estrutura para bancar isso. [5]

É importante ressaltar, para evitar confusões ou comparações precipitadas e equivocadas, que “Caros Amigos” não é uma cópia de “Realidade”. Desde sua gênese, a publicação da editora Casa Amarela manifesta a vontade e desejo de oferecer aos seus leitores a grande reportagem, o texto narrativo de fôlego e profundidade, as matérias de compreensão do mundo, as histórias bem contadas. E, em momentos isolados, esparsos, fruto de muito esforço, dedicação e voluntarismo mesmo dos caros amigos, essa vontade pôde ser realizada e se transformou em material concreto. Há reportagens na revista. Aliás, sempre houve, e nos últimos tempos elas têm aparecido com mais freqüência. Mas, definitivamente, isso ainda se estrutura e se mantém no plano do ideal, e não do real periódico e definidor de características principais. “Caros Amigos” pode querer se transformar em, mas ainda não é, definitivamente, uma revista de reportagens. “Realidade”  tinha todo o suporte da editora Abril – e a mais bem paga e qualificada equipe de jornalistas do país. “Caros Amigos” é muito, mas muito mais modesta mesmo. Nesse quesito, não há termos de comparação. Por isso, para “Caros Amigos”, a reportagem continua a ser um sedutor objeto de desejo. Fica no ar a canção de que “um dia eu chego lá”.

No entanto, ainda que de forma modesta, ao (re) patrocinar o encontro do jornalismo com a literatura, “Caros Amigos” ajuda a vencer um antigo preconceito de mão dupla: para alguns romancistas, o jornalismo representaria a simplificação da linguagem e a consagração de narrativas menores, de segunda categoria; na outra ponta, não faltariam jornalistas a afirmar que a literatura fecha-se em seu mundo elitista e restrito, recusando-se a tornar-se acessível e democrática a segmentos mais amplos da sociedade. O mundo multidisciplinar e complexo descrito pelo filósofo francês Edgar Morin aos poucos deixa de aceitar a fragmentação reducionista, empacotada em compartimentos exclusivistas, abrindo espaço para a integração, a interação, a multiplicidade e o contato fraterno de visões e conceitos. Ao defender essa cumplicidade, o jornalista Gustavo de Castro afirma que

O saber literário é precisamente uma resistência frente a trivialização do mundo. O saber jornalístico é, por sua vez, a resistência frente à passividade e à desmemorização do homem. Para uma sensibilidade cultivada, o sentido que um acontecimento toma não distingue um saber do outro, ambos convergem, dialogam, subsidiam-se, complementam-se. (...) Escritores e jornalistas participam assim do mesmo universo: o da narração. Descritores de fatos, coisas, cenas, lembranças e idéias, vivem de contar e escrever histórias, geralmente sobre o frágil suporte do papel (IN CASTRO & GALENO, 2002: 82-3)

Em nosso caso específico, o grande beneficiado é o leitor, que, com “Caros Amigos”, passa a ter acesso à possibilidade de se informar e de se formar sem perder de vista a possibilidade do encanto, da fruição, do gosto pela leitura. Preocupada com o intenso trabalho de apuração e garimpagem, de investigação e mergulho nos temas de que trata, com a humanização dos relatos, com a observação participante, a descrição de detalhes, pormenores e ambientes, com os fluxos de consciência, os diálogos e personagens, o tempo circular e não linear, as causas e conseqüências, a coesão e a fluência textuais, os nexos e as correlações, o ritmo da narrativa, a dramaticidade e a emoção, a empatia com o leitor, os textos autorais, “Caros Amigos” consagra a prática do jornalismo literário e resgata a arte de contar boas histórias. Ao abrir espaço para essa realidade, de maneira ousada e criativa, a revista nos mostra que não há fórmulas mágicas inquestionáveis, e que outros jornalismos são possíveis. Trata-se de jornalismos que se preocupam, essencialmente, com o direito à informação, a realidade complexa, o debate plural de idéias e versões, a multiplicidade de linhas de pensamento, os valores dos direitos humanos e da justiça social. São jornalismos que se preocupam, acima de tudo, com a ética construção da cidadania. Por maiores que sejam os desafios enfrentados.

Notas

  1. Leandro Marshall. O jornalismo na era da publicidade: a transgenia das linguagens na pós-modernidade. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2000 - pp 34 e 41.
  2. Graça Caldas. Por um jornalismo crítico e cidadão. Artigo publicado pelo site do “Observatório da Imprensa” – 20/10/1999. Endereço na internet: www.observatóriodaimprensa.com.br
  3. Sérgio de Souza, em entrevista ao autor.
  4. Marina Amaral, em entrevista ao autor.
  5. José Arbex, em entrevista ao autor.

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Francisco Bicudo é mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e autor do livro Caros Amigos e o resgate da imprensa alternativa no Brasil (Editora Annablume, 2004).
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