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SEMIOSFERA<BR> Um novo domínio de idéias científicas para o estudo da cultura

Jan 04, 2006

Todo conceito tem uma história. Não somente história, mas filiação filosófica, ideológica, pragmática. Assegurar tanto a história quanto a filiação dos conceitos é tarefa inalienável do trabalho teórico que subsidia toda pesquisa científica. Nesse sentido, é possível dizer que uma das tarefas primordiais do trabalho acadêmico é preservar, divulgar, cultivar entre os pesquisadores a ética dos conceitos, sobretudo quando a pressa ou o modismo ameaçam a sobrevida de algumas descobertas cujo valor é inestimável para a história da cultura. Preservar e divulgar os conceitos formulados pelos teóricos russos para o estudo semiótico da cultura é o grande desafio desse compromisso ético.  Esse é um imperativo quando conceitos como “cultura como texto”, “ecologia dos sistemas culturais”, “semiosfera”.

Qual seria a história do conceito de semiosfera? Assim como biosfera designa a esfera da vida no planeta, tal como formulara o geoquímico Vladímir Ivanovich Vernádski, semiosfera designa o espaço cultural habitado pelos signos. Fora dele, nem os processos de comunicação, nem o desenvolvimento de códigos e de linguagens em diferentes domínios da cultura seriam possíveis. Nesse sentido, semiosfera é o espaço de encontros entre diferentes culturas.  

A idéia predominante de que os encontros culturais são explosivos, dialógicos e geradores de sistemas de signos novos, foi a principal responsável pelo questionamento que levou o semioticista russo Iúri Lótman a investigar as relações entre sistemas de signos no interior da “semiosfera”. Seguindo a orientação daquilo que já fora formulado por Mikhail Bakhtin em seus estudos sobre o dialogismo, Lótman investiu seus esforços para compreender a dinâmica dos encontros culturais, isto é, para compreender como duas culturas se encontram, que tipo de diálogo elas travam entre si e como elas criam experiências capazes de reconfigurar o campo das forças culturais. Os tópicos principais desse trabalho Lótman apresentou num artigo entitulado “Sobre a semiosfera”, publicado em 1984. Trata-se de um estudo rico em direcionamento de análise e, por isso mesmo, que aponta um novo e imenso campo de pesquisa dentro dos estudos semióticos.

Em primeiro lugar vale lembrar que encontros culturais são movimentos que estão na base formadora de toda cultura. A história das civilizações nunca deixou de registrá-los, ainda que, no campo das disputas sócio-políticas e econômicas, tais encontros sejam traduzidos como choque, resultado irreversível de toda sorte de conflitos. Por conseguinte, os encontros culturais são definidos como momentos explosivos, capazes de redirecionar o campo de forças em todos os níveis da conjuntura social.

Explosões culturais, contudo, não são fenômenos físicos, como via de regra se denomina a explosão. Do ponto de vista filosófico, são momentos de grande imprevisibilidade que levam ao florescimento de novas configurações no cenário das representações culturais. Para a abordagem semiótica, trata-se da constituição de sistemas de signos que, mesmo marcados pela diversidade, apresentam-se inter-relacionados num mesmo espaço cultural, estabelecendo entre si diferentes diálogos graças aos quais o choque se transforma em encontro gerador de novos signos. Isso é válido tanto para encontros de culturas e de línguas (veja-se o exemplo dos vários multiculturalismos), quanto para o encontro entre diferentes sistemas (caso comum nos sistemas da arte e, mais recentemente, nos explosivos sistemas da comunicação pelos meios e pelas redes). Essa é a dinâmica que está na base dos sistemas culturais que podem ser compreendidos, assim, como manifestação de linguagem. Para os encontros culturais assim concebidos, o maior desafio é a compreensão da natureza das interações - entre códigos, linguagens, sistemas culturais das mais variadas procedências -  a partir das quais duas culturas radicalmente diferentes dialogam e se compreendem mutuamente.

Por isso, enquanto muitos estudiosos afirmam que o encontro entre diferentes culturas ou sistemas são os principais responsáveis pelos choques culturais, os estudos sobre a semiosfera apresentam uma outra alternativa: descartaram a idéia de choque, apostando na convivência das diversidades. Afinal, se a vida no planeta está assegurada pela biodiversidade das espécies, a vida na cultura só pode estar vinculada à sobrevivência da diversidade dos signos. Essa uma noção que fica assegurada nos estudos sobre a semiosfera. Assim, os estudos sobre a semiosfera atendem à necessidade de se compreender não apenas as relações, mas as conexões que aproximam sistemas tão diferentes nos encontros culturais movidos pelas mais diferentes causas: choques, expansão ou emergências. Também nos ajudam a pensar mecanismos básicos da constituição do espaço semiótico tais como a irregularidade, a heterogeneidade, a fronteira e a transformação da informação em texto e, sobretudo, do hibridismo – características fundamentais da cultura contemporânea.

Nunca se falou tanto em hibridismo como nesses tempos de expansão nos domínios da comunicação tecnológica. De igual modo, nunca essa noção foi tão mal compreendida. Se no campo da biologia a espécie híbrida é estéril, o que levou essa palavra a passar ao domínio da cultura para designar as produções mais férteis e exuberantes?

Essa é uma pergunta que fica no ar quando não se tem muita clareza sobre o funcionamento da cultura. As coisas tendem a ficar mais claras quando se reconhece que a produção cultural vive das interferências que os signos exercem uns sobre os outros, sobretudo aquelas que acontecem nos encontros entre diferentes sistemas culturais. É próprio da cultura promover aproximações até mesmo entre diversidades. Não é à toa que para sobreviver culturalmente precisamos nos relacionar com sistemas de signos das mais variadas natureza e procedência tais como mitos, religião, artes, arquitetura, filmes, entretenimento, poesia, dança, jogos, línguas, linguagens artificiais e tantos outros.

A compreensão da semiosfera concebida por Lótman é, portanto, uma tarefa urgente. Os estudos sobre a semiosfera marcam o nascimento intelectual de um complexo domínio teórico de investigação científica sobre as intrincadas relações, interações, tensões e conexões entre signos e sistemas de signos nos espaços culturais. Nele a cultura passa a ser focalizada como processo, nunca como produto. Na verdade, a capacidade de estabelecer diálogo entre diversidades (códigos, linguagens, culturas) tornou os sistemas semióticos os objetos privilegiados dos estudos sobre a semiosfera. Assim como a biosfera é a instância da manutenção da vida no planeta, a semiosfera foi proposta como esfera da vida dos signos garantida pela interação da diversidade semiótica, vale dizer, da semiodiversidade (em sentido correlato ao de biodiversidade). Este é um aspecto importante no entendimento da Semiosfera.

Desde que a informação em circulação no cosmos pode ser codificada e se constituir enquanto signo ou sistemas de signos, a distinção entre natureza e cultura perde o rigor e estas deixam de ser entendidas como oposição. Do ponto de vista da semiosfera, “a nossa natureza é a cultura”, logo, natureza e cultura são sistemas que se interrelacionam de alguma forma. Esse é o argumento elementar que justifica a Semiosfera como um novo domínio de idéias para o estudo científico da cultura.

Essas e muitas outras formulações ainda estão à espera de uma compreensão mais aguda e abrangente, sobretudo no contexto da cultura contemporânea. O ponto de partida certamente é a tradição da semiótica russa, particularmente as investigações da Escola de Tártu-Moscou e seus estudos sobre os sistemas modelizantes, as linguagens secundárias, artificiais e dos códigos culturais. Esses estudos amadureceram em reuniões científicas, os chamados seminários de verão, que se realizaram na Universidade de Tártu, Estônia, a partir dos anos 50. Nosso objetivo é alcançar os propósitos delineados pelo pensamento semiótico por meio dos encontros culturais e da conseqüente mobilização de signos que os avanços das tecnologias da informação e da comunicação.

Poucos de nós duvida de que a cultura seja um espaço privilegiado de signos; contudo, há muito o que se compreender sobre a dinâmica que comanda a relação entre os sistemas nesses espaços. Quanto mais instrumentos para se pensar tais mecanismos formos capazes de desenvolver, maiores serão nossas possibilidades de conhecer a semiose. Daí nossa necessidade em apresentar a semiosfera como um novo campo de conhecimento científico da semiótica da cultura.

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Irene Machado é doutora em Letras pela USP e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente é professora no Programa de estudos pós-graduados em comunicação e semiótica da PUC-SP. Coordenadora do NP Semiótica da Comunicação da Intercom; ex-Presidente da Associação Brasileira de Estudos Semióticos; coordenadora do Projeto “Semiosfera: espaços semióticos compartilhados” na Incubadora Virtual Fapesp com o Grupo de pesquisa para o estudo da Semiosfera “Oktiabr”, registrado no CNPq e sediado na PUC-SP. Desenvolve pesquisas e orienta trabalhos sobre Semiótica dos Sistemas da Cultura e das Mídias, tendo como suporte teórico a Semiótica Russa e a Ecologia da Comunicação. É autora de diversas obras.

Contato: [email protected]
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