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Coque Vive: comunicação, educação e cultura

Dec 03, 2008

Realização: Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (Recife - PE)

 

1. Justificativa

1.1 Coque: um estigma por problema

O bairro do Coque, no centro do Recife, abriga 40 mil pessoas.  Está no coração do Recife, pode ser visto de cima do viaduto da Ilha de Joana Bezerra, é ponto coronário do sistema metroviário da cidade, é caminho de encruzilhadas para outros bairros: Afogados, Ilha do Leite, Boa Viagem, Ilha do Retiro, Ilha Paissandu...Poderia-se dizer que o bairro chega a ser um “portal” para vários locais do Recife, devido à sua disposição geográfica. Um local assim, com certeza, pareceria ser muito sujeito a passagens e encontros da cidade com ela mesma. Mas não é bem assim.

O Coque é também composto de sombras e de percursos silenciosos, que foram se somando com o tempo, sendo reiteradamente veiculados pelas mídias. Recortamos notícias que abordam o bairro ao longo de três décadas: Coque não muda: fome, crime e promiscuidade. Mas continua divertido. (19.09.1976), Esquadrão fuzila mais um no Coque (03.11.1987), Dois jovens são mortos no Coque (08.09.1990), Galeras agem livremente e matam mais 2(04.10.1993), Rota do medo (29.03.2004) Essas notícias vão se solidificando no tempo-espaço, formando um contínuo que mascara a localização “multi-arterial” do bairro. Diferente de muitas outras ilhas do Recife, que são convites a passagem, o Coque se torna uma ilha nas quais à predisposição a criação de “pontes” não é ressaltada, ao contrário, sua própria vocação de ilha é maximizada, seu isolamento é superdimensionado, sua vocação se torna a do gueto.

Ilha porque seu espaço é circundado por “águas” de todos os lados, águas essas que possuem uma dupla consistência: possuem uma certa flexibidade em seus nuances e alcances, mas são sólidas no que se trata de dar sentido ao bairro.  Ilha também porque suas vias são aparentemente inexistentes. “Como chegar ao Coque?” Mesmo na estação Joana Bezerra, há muitas alertas por parte dos guardas: “cuidado, você pode ser roubado, há muitos malandros por aí”. A pergunta está equivocada, na verdade, a ilha se dá quando se pergunta: “Quem quer chegar ao Coque?”

Então a ilha vai ganhando outros contornos. Na verdade, é uma ilha cheia de bueiros, de buracos e de zonas “ocas” preenchidas por gente perigosa, crianças bandidas, mulheres de vida fácil, onde a morte anda lado a lado com as pessoas e “ninguém acha isso nada demais”. É uma ilha e um gueto discursivo e social.

Gueto discursivo porque o estigma se estende em diversos gêneros dentro dos jornais: expressões como “cuidado, você está no bairro do Coque” surgem na sessão de cartas, na coluna de cidadania e, com certeza, no caderno policial. Gueto social também porque o bairro simbólico tem limites superficiais bem estabelecidos no mapa “viário” da cidade, embora, aparentemente, seu território não pareça ter um limite fixo (onde o estigma termina?). Os ônibus literalmente “margeiam’ o bairro, com grandes curvas e manobras dos motoristas. Gueto social  porque há a impressão de que os “cocudos” que moram ali não deveriam sair de suas tocas, deveriam, na verdade, apenas estabelecerem-se lá até que possam morrer naturalmente ou matarem-se nas guerras que bem sabem fazer, as guerras de violência.

Mas a água que circunda toda a ilha também é um convite para as garrafas que carregam mensagens por dentro. E também todo o gueto é convite para algum desavisado que deseje, por algum motivo desconhecido, aprofundar-se nos seus subterrâneos. Dessa forma, como desavisados, foi que nos encontramos com o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi) e a associação Núcleo Educacional Irmãos Menores Francisco de Assis – (Neimfa), os quais, como experientes navegadores e conhecedores do lugar em que viviam souberam fazer o convite certeiro.
 
Dentro do Coque, essas duas instituições têm caráter bem diferenciados. O Mabi  existe há cinco anos, é formada por jovens que atuam no movimento sociocultural do bairro, principalmente os que se motivam a partir da música (rock´roll), literatura e da arte. São ex-alunos, em sua grande maioria, da associação Neimfa, que é formada por um conjunto de agentes socioculturais diversos: pedagogos, psicólogos, médicos, enfermeiros, os quais realizam um trabalho de formação político-ética no bairro com ênfase nas práticas espirituais de diferentes tradições.

Quanto a nós, do Departamento de Comunicação Social da UFPE, fomos os viajantes desavisados e destinatários do convite feito por jovens do Mabi dentro de uma sala de aula do NEIMFA: realizar um jornal que construísse o Coque de outra forma possível, uma forma além da violência e do medo.

1.2  O jornal “Coque”: um experiência de ensino, um projeto de extensão

 A professora Yvana Fechine, responsável pela disciplina de Edição, tinha como objetivo, no segundo semestre de 2006,  juntamente com a turma do sexto período de jornalismo, a produção de um jornal-laboratório. Foi assim que o convite feito pelos jovens do bairro chegou a turma e a produção do jornal foi discutida. O resultado das discussões: não apenas a turma se motivou com a empreitada, como também o jornal foi produzido no ombro a ombro com os jovens do Mabi e do Neimfa. Tornou-se, portanto, um exercício de diálogo e de abertura para ouvir e se fazer ouvir entre sujeitos sociais com histórias tão diferentes. Acreditamos que talvez tenha sido essa primeira experiência que configuraria nossa atividade no Coque como uma prática em Direitos Humanos.

Até então os “personagens” relacionados ao bairro do Coque nos meios de comunicação eram em sua maioria sujeitos passivos às políticas do Governo (recebiam casas, eram transferidos para outros terrenos) ou sujeitos perigosos que constantemente violavam os direitos dos “cidadãos” do resto da cidade. No entanto, no momento em que o encontro efetivo dos jovens do bairro com os jovens da Universidade pode ocorrer, uma perspectiva nova começou a trilhar por dentro do grupo. Essa perspectiva dizia respeito a encontrar a realidade do outro tal como ele mesmo, sujeito da história, apontava e iniciar a conversa a partir daí, do respeito ao que o outro constrói de si.

O jornal, então, possuía sempre três textos. Um, o repórter da Universidade, outro, o repórter do bairro, e um terceiro que era o ensaio de alguém do grupo relatando a experiência para a produção de cada matéria. As matérias, por sua vez, remexeram com a própria história do que usualmente era reportado sobre o bairro. Trouxeram dados significativos sobre o qu
e é ser jovem morador da comunidade, quais são as violências  que realmente causam revolta, o medo de serem expulsos da terra, quais são os projetos e perspectivas dos próprios moradores, entre outras. Em 2007, o jornal foi premiado com o Prêmio Caixa de Jornalismo Universitário.

Motivados com o significado e impacto do jornal, os jovens do Mabi realizaram um novo convite: discutir a questão do agendamento da mídia sobre o bairro na perspectiva dos direitos humanos dos moradores. A partir do nosso aceite, foi assim que nasceu o projeto de extensão Coque Vive.

2. Objetivos

Apoiados por dois editais do Proext MEC/Sesu (2006-2007) e pelo edital do Proext Cultura (Minc/2007), o projeto de extensão Coque Vive tem como objetivos:

  • Pautar positivamente o bairro nos meios de comunicação
  • Construir uma rede de promoção social a partir dos atores e instituições socioculturais que já atuam no bairro
  • Discutir as representações da mídia sobre o bairro e incentivar a construção das representações dos próprios moradores
  • Incentivar ações de ensino, pesquisa e extensão a partir da atuação de estudantes universitários, bem como incentivo a que jovens do bairro também ingressem na Universidade.

3. Metodologia

Como o convite para a produção do jornal foi realizado a uma turma de estudantes universitários, estes, de certa forma, se tornaram os principais gestores do projeto, em parceria com professores e técnicos da UFPE. A metodologia do projeto, inicialmente, foi a partir de uma abordagem de educação paras mídias junto ao Mabi e a outros jovens do bairro , isto é, analisar criticamente os meios para identificar como eram construídas as representações sociais que violavam os direitos humanos dos moradores do bairro. Os monitores que debatiam estas questões eram os próprios estudantes da Universidade, em sua maioria, da área de Comunicação Social Jornalismo.

Essa abordagem gerou uma série de dispositivos pedagógicos que facilitavam a compreensão das estratégias e modus operandis das mídias. Envolveram a confecção de jogos didáticos como o “Noticiando” que perfazia o caminho de produção da notícia até chegar ao espectador, a comparação de matérias-brutas (filmagens) e matérias editadas sobre o bairro, além do próprio jornal-laboratório ‘Coque’ como plataforma pedagógica. As diversas formas como os direitos dos moradores eram violados eram devidamente expostas e debatidas.

No entanto, o grupo percebeu que esta abordagem trazia um pouco de apatia por parte dos jovens do bairro, nem todos possuíam interesse permanente em debater de maneira tão profunda sobre o agenciamento das mídias. Por outro lado, eles se animavam bastante quando a educação para mídias se voltava para a produção fotográfica. Os jovens se sentiam ‘localizados’ afetivamente nas imagens que produziam e agregavam ‘valor’ e ‘identidade’ ao lugar e ao cotidiano em que viviam.  Nesse sentido, realizamos a formação em direitos humanos no sentido inverso: não partindo mais da análise crítica, mas da criação dos jovens como elementos afirmativos do próprio bairro e de suas próprias vidas.

Enquanto metodologia, o projeto de extensão no Coque começou a entender que o que estava em jogo não era apenas a forma pela qual a mídia abordava o bairro, mas também o próprio conteúdo e expressão dos moradores do bairro. Ficamos curiosos também para saber o que poderia acontecer quando outros moradores encontrassem as fotografias. A partir da primeira exposição, realizada na sede da associação NEIMFA, vimos que homens, mulheres e crianças de todas as idades olhavam para aquelas fotos com um brilho diferente nos olhos. Suas vidas, a partir das imagens, retinham outros sentidos. Para nós, aquele brilho correspondia a noção de que estávamos presenciando o momento em que uma cultura de direitos humanos começava a surgir no Coque.

A partir da fotografia, seguimos para outras mídias: experimentos em programas de rádio, fanzines, vídeo. Os produtos realizados pelas oficinas começaram a re-significar a própria ação extensionista no bairro. Os monitores da universidade passaram a se tornar mais ‘parteiros’ do que ‘agenciadores’ de notícias sobre o bairro. Na verdade, as notícias sobre o bairro estavam ali, pululando na vida dos jovens, nos seus olhares e perspectivas em relação ao local onde moravam. Não coincidentemente, essa ação correspondeu justamente a um maior agenciamento das mídias sobre o bairro, uma vez que ‘muitas vozes’ do Coque começaram a se fazer presentes e a chamar atenção do resto da sociedade.

Em seguida, a própria produção dos moradores ressignificou o curso de formação, que passou a incluir dentro da proposta pedagógica perspectivas que pautavam diretamente o pertencimento e os sentimentos relacionados ao bairro. Confeccionaram-se, a partir daí, na oficina de Análise e Produção de Mídias, mapas afetivos, que são grandes painéis feitos com papel-madeira onde os jovens passam a situar seu espaço e seu cotidiano na medida em que desenham ruas, árvores e instituições do bairro. Descrevemos abaixo as ementas das disciplinas realizadas junto com os jovens do curso de Agentes de Comunicação Solidária em 2007-2008.

  • Leitura das Mídias: compreensão crítica dos meios de comunicação a partir de vivências e dinâmicas; reconstrução da imagem da comunidade nos meios de comunicação a partir dos próprios jovens.
  • Técnica das Mídias: explora as mídias alternativas como ferramentas de auto-aprendizado e auto-expressão; aperfeiçoamento técnico em fanzine, vídeo e web.
  • Imagem-Sonho, Vídeo e Fotografia: explora o audiovisual como um meio de reconhecimento das subjetividades dos jovens e como técnica de exploração para conhecimento de si e da sua comunidade espaço, envolvendo desde a leitura e interpretação de textos à sua produção. 
  • Roda Aberta, diálogos: problematizações e reflexões no âmbito da literatura, da arte, do cinema que possam provocar a reação e interação dos jovens, possibilitando o intercâmbio de vozes e saberes sobre determinados temas como identidade e comunidade. Envolve também a construção de novos repertórios entre os jovens.
  • Memória e Texto: resgate de subjetividades sobre o local onde se vive e das lembranças relacionadas a este espaço, envolvendo leitura, interpretação e produção textuais.
  • Competência em Textos: desenvolvimento das qualidades textuais dos jovens inseridos no curso a partir de diferentes gêneros da cultura escrita: narração, dissertação, descrição.
  • Filosofia e Cuidar do Ser: práticas de subjetividade que problematizam as relações de si a partir dos conceitos filosóficos. Traz à reflexão como a comunidade está se apropriando das relações de “cuidar de si”, quais são os atores sociais envolvidos nesse processo e de que forma suas ações podem ser potencializadas.
  • Arte em Vida: desenvolvimento e envolvimento dos jovens em práticas de cultura populares a partir de danças e vivências. Ao mesmo tempo, o módulo problematiza a vida de cada participante como uma ‘obra’ viva, trazendo à tona as questões de centro/periferia, representações sociais e culturais etc.
  • Cidade e Espaço: compreensão a cidade como um espaço público, imagético e de ocupação e afeto. Questionamento das noções de território, de periferia, de favelas e espaços populares
  • Imagem-Sonho: exploração e acolhimento das imagens produzidas a partir da comunidade (fotografia/vídeo), de forma que explore o potencial mobilizador da fotografia tanto nos sujeitos quanto no tecido social da comunidade.

A produção da notícia também ganhou outra conotação, a partir do momento em que, com as mãos em um monte de argila, os jovens eram convidados a repetir um ‘modelo’ proposto pelos monitores da universidade.  A partir do momento em que o modelo era repetido, divergências aconteciam e cada um sentia vontade de representar o objeto da sua própria forma. O objetivo dessa atividade era realmente evidenciar que existem múltiplas versões sobre a realidade, que somos partes integrantes dela e devemos nos perguntar sempre porque determinada versão pode ter predominância sobre outras.

Como a produção de material começou a ser bastante intensa, os próprios jovens do bairro se motivaram a realizar circuitos culturais nas suas escolas para divulgar seu trabalho para os outros jovens. A escola estadual Monsenhor Leonardo Barreto dedicou um dia de aula de sua carga horária para a realização do circuito que envolveu 400 alunos. Durante esse dia, diversas oficinas vivenciadas durante os encontros no NEIMFA foram realizadas. Muitos foram os testemunhos dos alunos da escola sobre sua alegria de ver o bairro onde viviam ser referenciado, pelo menos por um dia, como um local positivo.

 Consideramos também que, metodologicamente, os circuitos Coque Vive significaram a construção de uma rede de promoção social diferenciada sobre o bairro: a partir do momento que outros atores e instituições sociais locais iam visualizando a motivação e ação do projeto, foi surgindo espaço para novos sonhos, novas perspectivas serem construídas em conjunto.
Representamos a metodologia do projeto de extensão a partir do seguinte trigrama:

  • Criação de novos espaços socioculturais (circuitos e novas instituições)            
  • Formação (aprendizado)     
  • Produção de Conteúdos (mídias)

No trigrama, é a partir da formação e aprendizado vivenciados na sede do NEIMFA a partir do projeto de extensão que novos conteúdos são produzidos sobre o bairro. A partir do momento que esses conteúdos são produzidos, a cultura também passa a ser re-significada, ressaltando os elementos positivos da comunidade, fazendo com que o bairro não apenas se ‘comunique’ a partir de uma dimensão diferenciada – além do estigma – como também se comunique com o resto da cidade, a partir do momento que as ações realizadas localmente começam a chamar a atenção das mídias para um outro Coque também possível de ser reportado. O Coque de seus próprios moradores.

4. Embasamento teórico

O projeto de extensão assume como pressuposto teórico que a construção de redes sociais, a partir dos circuitos culturais no próprio bairro, pode colaborar decisivamente para o combate à violência (local e simbólica) e a melhoria da qualidade de vida em comunidades que se tornam reféns da atuação de grupos criminosos que cooptam os jovens para suas ações apoiados na falta de perspectivas e na auto-desvaloração. Identificamos as redes sociais como o conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos, através da troca de recursos materiais ou emocionais, como afeto, informação, produtos,  etc. (MERCKLÉ, 2004).  O conceito de “rede” que alicerça o projeto de extensão Coque Vive permite tratar também da incorporação progressiva dos jovens locais nessas ações, de maneira que um dos principais objetivos do projeto é ampliar os limites dessa rede de promoção social muito além das entidades, incluindo, portanto, não apenas atores do bairro como também atores da Universidade, como estudantes e professores de outros departamentos.

Acreditamos que a base de origem da rede que estamos desenvolvendo são os direitos humanos, uma vez que a rede estabelecida tem por principio os direitos fundamentais dos moradores do bairro do Coque, compreendidos pelo direito de ser e de comunicar sobre suas vidas de uma forma digna. Sabemos também que a partir do momento que esta rede se estabiliza, é criada uma possibilidade permanente de que esses direitos não sejam mais violados ou que seja possível, a partir da rede, reivindicá-los de maneira mais contundente.

Em comunidades ‘naturalizadas’ como violentas, como o Coque, a ausência de redes sociais que configurem novas oportunidades  de identificação para os jovens, a partir, antes de mais nada, da sua formação crítica, mas também da promoção de vínculos com outros agentes de mediação, abrem caminho para o tráfico e gangues. Estas oferecem, de modo mais imediato, oportunidades de reconhecimento e respeito dentro da comunidade. Este respeito e reconhecimento, que se dá às custas da manutenção de um ethos de violência no bairro, além de reforçar o círculo vicioso de exclusão que vitima o Coque. No entanto, esse círculo, é efêmero e, muitas vezes, fatal já que a maioria dos jovens associados à tais práticas não ultrapassem os 18 anos. Entretanto, em um ambiente no qual se nega aos jovens os direitos humanos mais elementares, a prática criminosa torna-se não apenas um meio de conquistar bens materiais, mas também uma fonte de ganhos simbólicos, uma vez que o medo que inspiram é percebido como poder. Tais práticas e comportamentos são difundidos na comunidade de modo indiscriminado e rápido, sendo facilmente mimetizados pelas crianças. A rede social que o projeto Coque Vive constrói atua, nesse cenário, como uma plataforma para novos reconhecimentos e produção de memória que, conforme Santos (2003), é fator essencial para afirmação dos elos comunitários.

Se o esquecimento e o isolamento favorecem a perpetuação e reificação da violência, o agendamento de uma memória mais positiva, ao contrário, abre caminho para novas valorações: atitudes, comportamentos, vínculos mais afirmativos – novas formas, enfim, de pertencimento ao Coque. Cria-se, assim, uma pauta nova na comunidade a partir da configuração de outras redes sociais dentro dela. Considera-se que, dessa forma, a transformação positiva do bairro pode começar pela ‘lembrança’ de que a violência não é, em definitivo, o único caminho para os seus jovens.  Não se trata, no caso, de uma ‘re-escrita’ da história do bairro, na qual a violência é desconsiderada, mas sim de uma reconstrução das representações sociais dos jovens, tentando, pela transformação dos valores, levá-los a questionar o caminho “fácil” da violência. Trata-se, enfim, de estimular a criação de novos vínculos com outras redes sociais, a partir das quais pode se dar seu crescimento pessoal e sua contribuição à comunidade e, por meio deles, seu próprio amadurecimento profissional. Há, dessa forma, uma necessidade evidente de se construir instâncias de mediação capazes de construir com e a partir desses jovens oportunidades de discussão que atravessem o ciclo vicioso do preconceito e da exclusão provocados pela violência que estigmatiza hoje o Coque. Afinal, a violência de que são vítimas os moradores do Coque é também uma violência simbólica, um processo através do qual são levados a abrir mão de sua própria representação identitária para abraçar a visão pejorativa que outras classes e grupos sociais têm deles (BOURDIEU, 2004). A memória de uma comunidade, a partir da sua criação coletiva em rede, é uma contra-memória em relação às construções sociais negativas por parte dos meios de comunicação, sobretudo.

Os produtos de mídia (sites, fanzines, painéis de fotos e grafites, vídeos, narrativas orais) criados durante a formação proposta no projeto são, dessa forma, artefatos da memória capazes de resistir e de serem ressignificados pelas gerações presentes e futuras, ao passo que também são materiais que podem agendar as grandes mídias para novas abordagens da comunidade.

5. Potencial de Impacto

As mudanças almejadas pelo projeto de extensão Coque Vive dizem respeito ao fortalecimento da rede de promoção social, como também a estruturação de um Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão na Universidade que possa articular as ações desenvolvidas na extensão com as outras duas áreas de ação, respectivamente. Teríamos assim uma plataforma dentro da Universidade que estaria pautando continuamente os direitos humanos não apenas dos moradores do Coque como também de outras comunidades marginalizadas no Recife. Por outro lado, o fortalecimento da rede de promoção social, a partir do trigrama proposto, significa necessariamente o fortalecimento dos atores do bairro que já constroem uma memória positiva, afetiva e efetiva sobre o bairro. Quanto maior e mais diversa for a participação da comunidade nessa reconstrução simbólica, a partir do aprendizado/formação proposto pelo projeto, bem como pela inserção de pautas significativas nessa formação (como os diversos direitos: criança e adolescente, civis, da mulher, do idoso, etc) mais intensa será a identificação dos moradores do bairro com uma possibilidade de representação e apresentação positivas e promotoras de uma sociedade mais justa.

Também pontuamos como foco de nossa atenção a necessidade de serem realizados mais seminários e debates com a sociedade civil para dividir as responsabilidades sobre a violência – real e simbólica – cometida, aparentemente, apenas pelos moradores dos bairros marginalizados. Convocar atores como Ministério Público, empresas de comunicação, professores e diretores de escolas, gestores públicos e a sociedade civil organizada para acrescentarem à pauta do projeto de extensão suas perspectivas também é uma forma de perguntar de que forma pode-se fazer dos direitos humanos uma perspectiva cultural de toda a sociedade.  


6. Resultados (esperados e alcançados)

Os primeiros resultados encontrados pelo Projeto de Extensão foram o envolvimento cada vez maior de jovens universitários e jovens da comunidade nas ações. Ao todo, são 15 estudantes de comunicação social, letras, artes plásticas e educação envolvidos e cerca de 25 jovens do bairro envolvidos, sendo 15 dos Agentes de Comunicação Solidária (ACS) e 10 do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi). A compreensão e a possibilidade de ver como outros podem ver o mundo e como podem fazer isso juntos foi um passo muito importante para a comunidade e para a Universidade. No momento em que se dedicaram a “apreender” juntos uma pedagogia da comunicação para o bairro, esses atores também foram construindo novos espaços sociais em seus locais de origem. Assim, houve o que podemos chamar de uma vontade de “criar”, juntos, perspectivas humanas diferenciadas. Destacamos, nesse sentido, a Biblioteca Popular do Coque (2006) e a Estação Digitial de Difusão de Conteúdos (2008) que foram construídas na comunidade. A Biblioteca foi fruto de um conjunto de esforços da Igreja local (São Francisco de Assis do Coque), do Neimfa, Mabi e Universidade e hoje possui um acervo de 4 mil livros, integra a rede de Bibliotecas Comunitárias do Recife e é um importante pólo de encontros de atores sociais do bairro, além de incentivar a criação de novos líderes. Também merece destaque a parceria com o Observatório de Favelas que, junto aos jovens do Mabi, transforma a Biblioteca no “Cine Coque Vive”, com destaque para uma selação de filmes que prioriza os direitos humanos dos moradores das comunidades populares.  Na Universidade, novos espaços também foram criados: 07 projetos de iniciação científica foram realizados para 2008-2009, além de dois projetos de mestrado, duas disciplinas de ensino e uma pesquisa interinstitucional protagonizada por jovens da graduação e ex-alunos do projeto de extensão Coque Vive. De forma geral, as pesquisas estão focadas em “encontrar” a memória do bairro na mídia, descrevendo, portanto, de que forma as mídias vêm dando visibilidade ao Coque nos últimos trinta anos.

Por outro lado, as ações desses dois parceiros juntos significaram 05 circuitos culturais, com foco nos direitos humanos e cultura de paz, democratização da leitura e na memória do bairro. Esses circuitos, juntamente com as outras ações do projeto, trouxeram a tona um outro Coque para as mídias:

  • 01 série de reportagens denominada “Coque: um novo olhar”, divulgada pela TV Jornal/SBT entre os dias 25 e 29 de junho de 2007; 
  • 03 reportagens envolvendo atividades do Circuito de Mobilização Coque Vive (02 no NETV, 1ª e 2ª, edições, da Rede Globo; 01 no TV Jornal Notícias, da TV Jornal/SBT) no dia 21 de novembro de 2007;
  • 01 reportagem no Jornal do Commercio (JC) mencionando o projeto (“Audiovisual projeta o outro lado da periferia”, 07 de outubro de 2007); 
  • 03 reportagens sobre o Circuito de Mobilização Coque Vive nos três jornais locais (JC, Diário de Pernambuco, Folha de Pernambuco) no dia 22 de novembro de 2007. 
  • 02 reportagens sobre as ações do projeto no Jornal Futura (11 e 12 de fevereiro de 2008), Canal Futura.
  • 01 reportagem no site Americano Ohmy News – Art e Life – Hop on the Rainbow Caravan 
  • 01 reportagem no Diário de Pernambuco (30 de junho de 2008), no caderno cultural (Viver), sobre a publicação (livro de fotografias e memoriais) e vídeo produzidos no âmbito do Coque Vive.
  • 01 reportagem no Nosso Jornal, telejornal da Televisão Universitária de Pernambuco (30 de junho de 2008), o circuito cultural (evento de rua no Coque) para apresentação das publicações (02 livros) e vídeo produzidos no âmbito do Coque Vive.

No entanto, ainda espera-se mais: em três anos, a meta do projeto de extensão é a oncretização do site-plataforma e do estúdio do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis.

5. Perspectivas de continuidade e sustentabilidade

5.1 Implantação da Estação Digital de Difusão de Conteúdos

 Em 2007, seis integrantes do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis sofreram violência por parte da polícia. Em menos de dez minutos, a notícia da violência policial já estava na internet. Nas semanas seguintes, vários atores da rede Coque Vive se mobilizaram de forma a garantir a proteção dos jovens e a encaminhar a denúncia da violência aos órgãos competentes junto aos jovens do Mabi. O processo, que está previsto para se encerrar em maio de 2009, é um exemplo do tipo de violência que acontece “embaixo dos olhos” das grandes mídias e que se impõe contra a dignidade dos moradores da periferia. Para nós, a internet enquanto plataforma de acesso e difusão sobre o Coque vem sendo um dispositivo que merece cada vez mais atenção. Até 2007, No buscador virtual Google, a procura pela palavra “Coque”, remetia a três tipos de significado diferentes: um tipo de penteado, uma forma de carvão e notícias sobre um bairro do Recife associadas a assassinatos e furtos. Evidenciava-se, assim, a necessidade de investir na “ocupação” da rede virtual com conteúdos gerados sobre o Coque, ou a partir do Coque, em meio digital por meio da: 1) criação de blogs e flickers com conteúdos pautados pelo projeto de extensão; 2) inserção de jovens do Coque em comunidades virtuais nas quais pudessem agendar o debate sobre o bairro (orkut, msn, entre outros); 3) inserção de conteúdo em redes colaborativas (Wikipédia, You Tube).

Inicialmente, a Estação Digital de Difusão de Conteúdos foi concebida como uma “estratégia de resistência” na web, a partir da divulgação na internet dos produtos dos Agentes de Comunicação Solidária (CACS) e do Mabi. Coerente com essa primeira concepção, esse material foi apresentado ao público, através dos circuitos culturais, e disponibilizado na interface virtual, pelos estudantes universitários e jovens da comunidade, fazendo surgir o que chamamos de “memória sócio-virtual” da comunidade disponível em www.coquevive.org e www.coquevive.wordpress.com

A concepção da Estação Digital como um espaço virtual foi, no decorrer do projeto, evoluindo para a proposição de uma meta de três anos (2008-2010) cujo objetivo era a implantação de um espaço físico de produção musical e audiovisual no Coque. Essa proposta passa a acontecer no momento em que os atores da Rede – Universidade, Neimfa, Biblioteca e Mabi se reúnem para potencializar o alcance das produções culturais desenvolvidas no bairro. Para isso, foi fundamental o recebimento de uma premiação em dinheiro concedida pela Caixa Econômica Federal pela publicação do Jornal “Coque” (Prêmio Jornalismo Universitário da Caixa, 2007). Como os recursos, foi possível elaborar o projeto e a reforma uma sala cedida pelo NEIMFA para sua implantação (as obras físicas estão em curso).
 
Quando pronta, a Estação Digital funcionará, portanto, como uma plataforma capaz de oferecer condições para a produção de conteúdos gerados sobre o Coque e a partir do Coque, mas também como um local que estimulará a apropriação de um espaço comunitário e a associação coletiva dos atores sociais no bairro. Entre os participantes do projeto, já se sinaliza a possibilidade que a estação tem de agregar perspectivas como a da economia solidária, construindo rotas alternativas de “publicização” dos próprios moradores do bairro que possuem alguma forma de comércio.

No entanto, independente destas questões, a sustentabilidade do projeto de extensão Coque Vive é a autonomia dos agentes que estão envolvidos nesta rede. A Universidade realiza sua função muito mais como uma mediadora, articulando simbolicamente as instituições e atores que já existem no bairro para que possam “ver e fazer” sentido de estarem juntos. Enquanto conseguir manter essa atenção sensível o projeto de extensão ainda fará sentido, uma vez que essa atenção é a instância que articula o dialogo e reconhece no outro a incrível habilidade de ser humano.

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