Personal tools
You are here: Home Fórum A presença sócio-semiótica da palavra na comunicação social

Fórum

A presença sócio-semiótica da palavra na comunicação social

Jan 04, 2006

As reflexões sobre a comunicação social encontram importante aporte nos estudos de Mikahil Bakhtin sobre a ideologia e os signos, a partir de uma compreensão da consciência individual e da formaÃ

“A palavra é o modo mais puro
e sensível da relação social”
(Bakhtin)


Ao estudar as expressões populares (ditos, ditados, provérbios, anexins, rifãos, adágios etc.), deparamo-nos com a importância da palavra como elemento importante da comunicação social. As expressões populares, entre inúmeras outras modalidades  comunicativas, podem ser vistas apenas como uma manifestação corriqueira de uma parcela do povo – quase sempre, a parcela inculta, subalterna – no sentido puramente de uma linguagem de poucos recursos culturais; ou podem ser vistas como elemento integrante do processo da comunicação social. No primeiro caso, elas incorporam um valor reduzido, sem importância maior e para cuja compreensão os estudos lingüísticos semióticos já realizados serão suficientes; portanto, nada mais oferecem à pesquisa em ciências sociais. No segundo caso, as expressões populares se constituem em campo fértil de exploração para compreender-se o indivíduo sócio-interativo, bem como mutações culturais de variadas naturezas.

Os estudos de Mikhail Bakhtin e, em especial, o seu pensamento exposto em Marxismo e filosofia da linguagem destacam o valor da palavra e de maneira incisiva chamam a atenção para sua importância nos processos da comunicação social (a palavra enquanto unidade elementar da linguagem e no sentido geral encadeamento de palavras). Por isso, seu aporte aqui permite refletir sobre aspectos das expressões populares a partir do lugar de fala e em decorrência da significação enquanto sentido proposto. Pois as expressões populares são sempre atos de fala cujo sentido está aprisionado pelo lugar, em permanente dialogismo bakhtiniano, ou seja, só se pode apreender o sentido delas a partir da compreensão dos signos e sua significação no contexto dado.

A dimensão da palavra em Bakhtin implica a ideologia e por isso “pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa” [1]. Mas a compreensão da palavra exige que se vá além do seu conteúdo ideológico, ou seja, que se alcancem as refrações do “discurso de outrem” que a palavra realiza no universo simbólico em sua condição de expressão da consciência individual. Portanto, ideologia, discurso de outrem e consciência individual devem ser vistos como elementos implicados da palavra, elementos que preenchem qualquer palavra e que, em si e no conjunto, são capazes de tornar compreensíveis as palavras em seu significado e em sua significação enquanto sentido proposto, considerando-se ainda a importante questão do lugar de fala e dos discursos exteriores, dos signos sociais que vão determinar e modelar a consciência individual.

Palavra e ideologia

A compreensão da palavra conduz à percepção de que a ideologia e o universo semiótico são necessários um ao outro; o que importa na ideologia é, em primeiro lugar, o seu significado e, posteriormente, a significação dada. Mas o significado é também a constatação da presença do signo mediante o qual a ideologia se revela e sem o qual ela – a ideologia – não existe. Ou seja, o signo assume valor ideológico quando incorpora um significado que não lhe é próprio, que não tem origem em si mesmo, mas se faz dentro de um certo consenso social, de um consenso resultante de uma interação no curso da comunicação social. Se um grupo assume um signo como a representação de uma idéia está atribuindo-lhe um valor ideológico que originalmente não possuía, um novo significado. Uma palavra de ordem é um signo cujo significado se diferencia da palavra original, assume outro sentido para dizer algo que antes não dizia. O conteúdo ideológico do signo, portanto, é um acréscimo proveniente do mundo exterior que determina uma alteração do significado sígnico, ou seja, uma alteração na representação do real que o signo exprime, mesmo que se considere, com Bakhtin, que o signo ideológico é reflexo, sombra e fragmento material da realidade.  Todavia, “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra”. [2]

As íntimas ligações que se verificam entre signo e ideologia explicam as relações dos dois mas, também revelam que a ideologia só existe em função do signo, pois ela mesma é e está presente no signo.

Antes de prosseguir com a análise da ideologia em Bakhtin, convém conceituar de alguma maneira o signo em virtude de sua  importância nos estudos da linguagem. O. Ducrot e T. Todorov procuram fazê-lo mas não sem antes reconhecerem a sua complexidade, ou seja, a complexidade que explica as dificuldades conceituais do signo. Segundo estes autores, estas dificuldades são notoriamente aumentadas pelo fato de que os signos são vistos atualmente como entidades lingüísticas e ao mesmo tempo como signos não-verbais. Eis pois como procuram resolver a questão: “Definiremos, então, prudentemente, o signo como uma entidade que 1) pode tornar-se sensível, e 2) para um grupo definido de usuários, assinala uma falta nela mesma. A parte do signo que pode tornar-se sensível denomina-se, desde Saussure, significante, a parte ausente, significado, e a relação mantida por ambos, significação”. [3]

A Bakhtin interessa apontar as relações entre a construção dos signos e os fatos sociais, ou seja, importa demonstrar que a realidade social está presente nos signos e os transforma em “produtos ideológicos” quando, então, os signos não são mais e apenas signos, mas signos carregados de ideologia segundo um outro significado. É por isto que “um signo é um fenômeno do mundo exterior” [4] tal qual assinalam Ducrot e Todorov: “O signo é sempre institucional: nesse sentido, existe apenas para um grupo delimitado de usuários. Este grupo pode reduzir-se a uma só pessoa (do mesmo modo o nó que faço em meu lenço). Mas fora duma sociedade, por mais reduzida que seja, os signos não existem. Não é correto afirmar que a fumaça é o signo “natural” do fogo; ela é sua conseqüência, ou uma das partes. Somente uma comunidade de usuários pode instituí-la como signo”. [5]

Importa a Bakhtin localizar os signos ideológicos como elementos da realidade natural ou social, incluindo-os assim junto aos instrumentos de produção e os corpos físicos. Todavia, ressalta ele que os produtos ideológicos possuem uma característica que os diferencia dos dois outros, ou seja, eles refletem e refratam algo mais da realidade social como não o fazem os corpos físicos e os instrumentos de produção. Enquanto estes possuem funções definidas e somente funções, os produtos ideológicos possuem um conteúdo extra por conseqüência de relações sociais comunicativas entre os indivíduos. Com isto, Bakhtin chega ao importante ponto da constatação da existência do universo dos signos: “Portanto, ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos artigos de consumo existe um universo particular, o universo dos signos”. [6]

Um universo cujos elementos têm algo mais a dizer do que os demais quando se trata de compreender o homem e o móvel de suas ações. Um universo formado por signos que ultrapassam suas condições específicas, que se transformaram e se transformam por conseqüência de uma contínua ação do homem. Assim, qualquer objeto, qualquer corpo físico ou instrumento de trabalho pode passar de sua realidade natural à condição de produto ideológico, bem como “qualquer produto de consumo pode, da mesma forma, ser transformado em signo ideológico” [7] e cumprir uma função nova, uma outra função social, atendendo a interesses que não estavam neles presente anteriormente.

É necessário também ressaltar de forma enfática o “caráter semiótico” dos signos ideológicos, em virtude das conseqüências que daí resultam. Uma vez que “tudo que é ideológico possui um valor semiótico” [8], é preciso distinguir as diferenças entre os signos e o que eles representam, uma vez que são criados para expressar a realidade de cada grupo social. A análise semiótica dos signos precisa levar em consideração, segundo Bakhtin, a importante questão da representação, ou seja, o lugar do signo, o sentido nele presente e empregado, o que ele pretende segundo aqueles que o utilizam, sejam estes representantes do saber religioso, científico, jurídico, político, da sociedade de consumo etc. Isto porque “Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” [9].

Por isso mesmo e sob este aspecto, os signos oferecem amplas possibilidades de uma compreensão do mundo, visto que expressam uma parte da realidade capaz de ser apreendida semioticamente. Essa compreensão consiste em (re)estabelecer as ligações entre um signo ideológico e os signos que lhe dão sustentação, dentro de uma cadeia formada por elos significativos firmemente coesos, capazes de conduzir às conseqüências necessárias. Desta forma, a questão ideológica em Bakhtin conduz à visão de mundo, uma visão de mundo que determina a criação das ideologias e portanto dos signos. É preciso, contudo, penetrar o mundo da consciência para alargar o pensamento bakhtiniano do valor semiótico dos signos.

Palavra e consciência

Ao trabalhar a ideologia do signo, Bakhtin revela as ligações que se estabelecem entre a consciência e a palavra a partir de relações sociais de indivíduos e grupos: “A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social”. [10]

A consciência em Bakhtin está repleta de signos que refletem ideologicamente a realidade, que expressam idéias. É pelos signos que a consciência individual propõe uma compreensão do mundo, pois os signos são eles mesmos a representação do mundo apreendida, incorporada pela consciência. Assim, “O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior”. [11]

Bakhtin reclama para este ponto uma importância que classifica como fundamental por parte daquele que pretende compreender o homem através do estudo da ideologia. Uma vez que o signo preenche o espaço da consciência, aí também está presente o domínio da ideologia.

O homem “fala” através de signos; as relações sócio-comunicativas são o espaço da criatividade simbólica, são o campo onde se forma a “cadeia de criatividade e compreensão ideológica” [12] (p. 34) num contínuo permanente onde signos substituem signos (ações, reações). Ainda assim, segundo o autor há diferenças profundas entre os discursos produzidos nas diversas áreas da esfera ideológica, pelo fato de que “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”. [13]

Aqui, torna-se necessário realçar a diferença que Bakhtin faz entre a superestrutura da ideologia e a própria consciência, uma vez que ele condena a confusão metodológica daqueles que vêem a ideologia como que situada na consciência, quando ela é, na verdade, um “meio ideológico e social” [14] capaz de explicar a realidade da consciência.

Um fato sócio-ideológico que dispõe de um meio material pelo qual e a partir do qual passa a se constituir; para o autor, antes das relações comunicativas interacionistas não há uma consciência formada, mas apenas e depois da concretização destas relações. Esse meio material é a língua.

O tema da consciência e sua geratriz social conduzem a inúmeros questionamentos, que em Bakhtin vão resultar na explicação de que a evolução desta consciência tanto quanto sua constituição são fatos sociais marcados pela língua: “Como [a personalidade] tomará consciência de si mesma? Até que ponto será essa consciência de si rica e segura? Como motivará e apreciará os seus atos?”. [15]

Assim, a consciência se encontra em uma base imediatamente abaixo da ideologia e se forma, se constrói a partir dos signos que o meio social fornece. É isto que também explica que “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”. [16]

O estudo da consciência em Bakhtin conduz à compreensão sobre sua relação de dependência, pelo menos até certo ponto, à realidade sócio-ideológica, de modo a não só construir-se das ideologias em circulação na sociedade mas também a refleti-las a partir do momento em que o homem estabelece suas relações sócio-interativas. A realidade ideológica é colocada, assim, por Bakhtin como “uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica” [17], portanto ocupando um lugar superior e destacado.

A questão a ser enfatizada, entretanto, é a de que não reside na consciência a fonte das ideologias, senão que a consciência estruturada pelos signos sociais reflete-as e as reproduz permanentemente. Assim, quando os fatos sociais alteram as ideologias, a consciência individual tende imediatamente a assimilar as alterações e a reproduzi-las criativamente. Chega-se, assim, ao importante ponto ou lugar onde os signos ideológicos de fato atuam e circulam, proporcionando a apropriação pela consciência e este lugar é o espaço da comunicação social.

Retorna-se, assim, à questão inicial da palavra e sua importância para as relações sociais. Bakhtin vai enfatizar isso ao lembrar que a palavra, seja como unidade da língua ou como discurso, fornece as condições claras para o estudo da ideologia e conseqüentemente à compreensão dos fenômenos daí decorrentes.

Palavra e comunicação social

Já aqui se pode estabelecer uma unidade de pensamento com base em Bakhtin: ideologia, consciência individual e palavra constituem um núcleo básico para a compreensão da sociedade. Estes três domínios formam a complexidade das relações sócio-interativas. As considerações partem de uma constatação inicial de que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” [18] e desempenha sempre uma função sígnica, ou seja, ela é o veículo da transmissão da ideologia, o que confere à linguagem uma condição especial na análise semiótica da comunicação social. Trata-se de um ponto a merecer toda a atenção – diz o autor – em virtude daquilo que a palavra incorpora: a função de signo, função que lhe confere um valor inigualável.

No estudo da palavra, portanto, reside um aspecto especial de compreensão das relações interativas realizadas pelos indivíduos na sociedade. O que se diz, o sentido real da mensagem só pode ser compreendido pela análise do conteúdo ideológico contido no texto ou nas expressões. Não se trata da análise através da subjetividade humana, mas de considerar as condições culturais em que as comunicações sociais se estabelecem para encontrar o sentido dos signos que penetram e formam a consciência e daqueles outros signos que os indivíduos utilizam para expressar idéias e desejos.

Uma outra condição reforça ainda mais a função sígnica da palavra: a condição de signo neutro. Enquanto os signos de forma geral representam formas ideológicas específicas e representativas dos domínios nos quais foram gerados, a palavra possui uma neutralidade ideológica inicial e pode por isso servir a todos os domínios, como nenhum outro material o consegue, tornando-se signo ideológico a serviço da ciência, da moral, da religião e de qualquer outro campo particular. Ao chamar a atenção para isso e destacar que os signos e símbolos específicos de cada campo possuem uma função ideológica inseparável, que lhe confere sentido, Bakhtin aponta para as relações interativas que ocorrem no cotidiano das pessoas, como espaço importante da comunicação social e onde as coisas acontecem de modo sensível: “(...) existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rico e importante”. [19]

O que ocorre nas relações interativas cotidianas é que a palavra assume um papel especial como material das conversações e dos discursos em suas diversas formas, e também porque possui uma condição de veículo a serviço da consciência individual, “material semiótico da vida interior”. [20] Devido a isso, a palavra se torna meio pelo qual circulam as formas de compreensão do mundo, desde as atividades mais banais àquelas que dizem respeito à cultura geral e ao comportamento individual humano. Ou seja, “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”. [21]

As relações comunicativas cotidianas assumem especial importância exatamente porque se tornam espaço da criatividade ideológica, onde as situações sociais se mantêm ou se alteram, onde o curso das situações prossegue ou sugere novas direções. É na palavra que se podem perceber mudanças sociais em andamento ou em processo gestação.

Neste sentido, podem-se analisar as condições em que a sociedade está organizada culturalmente a partir dos signos que os indivíduos criam para expressarem-se e como esses signos são influenciados pela realidade, ou seja, a forma pela qual “o signo reflete e refrata a realidade em transformação” [22]. A palavra é um indicador seguro das transformações sociais, tanto para as que já assumiram uma forma definitiva quanto para as transformações que se encontram em curso. Por isso, ela é duplamente importante: como instrumento para conhecimento da realidade social e como meio capaz de antecipar mudanças cujo sentido não está claro. O que orienta nessa direção é a compreensão que se deve ter da palavra enquanto meio privilegiado de interatividade sócio-comunicativa.

Pode-se encontrar a palavra como esse “material sensível” capaz de atender aos indivíduos em suas necessidades de comunicação nas mais diversas formas e situações da vida cotidiana, em que os atos de fala têm o seu desenvolvimento e assumem determinada importância: “(...) as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulamentação social etc.”. [23]

Bakhtin, assim, chama a atenção para dois aspectos igualmente necessários ao estudo da psicologia do corpo social, dizendo que ela deve ser analisada: “...primeiramente, do ponto de vista do conteúdo, dos temas que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo lugar, do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se realizam, são experimentados, são pensados etc.” [24]

E nesse sentido, podem-se destacar tanto os repertórios quanto os temas que fazem parte de um determinado momento social. Não somente as relações cotidianas dos indivíduos numa sociedade são importante material para estudo, mas também aquelas que se dão no interior da vida familiar, porque representam significativo material para a compreensão da própria realidade social.

Por outro lado, à importância da palavra para o estudo da realidade social deve-se aliar um outro valor: a significação. Não bastaria atribuir importância à palavra e estudá-la do ponto de vista lingüístico; é preciso buscar sua significação no momento dado, seja nos atos de fala verbal, seja nos discursos diversos. Mas a significação só pode ser alcançada, só pode ser compreendida se for observada a partir das situações reais em que as relações sócio-interativas acontecem. Trata-se de considerar a materialidade da comunicação em termos de conteúdo da mensagem e dos signos que a consciência emite em resposta a outros signos, tendo-se por importante que os aspectos sociais orientam as consciências. Não somente as possibilidades culturais interferem na recepção, mas também dão o material para a compreensão e reinterpretação das mensagens. A preocupação, pois, de Bakhtin se volta para aspectos fundamentais como a qualidade contextual: “(...) a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso, mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual” [25]. Talvez por isso o permanente estranhamento no aprendizado das normas lingüísticas, estranhamento, por exemplo, que não ocorre quanto à língua nativa, que o indivíduo vai apreendendo a partir das primeiras relações familiares.

A qualidade contextual resulta desse fato importante que é a relação do indivíduo com o seu meio social, em que mentalmente vai organizando-se num permanente intercâmbio sígnico. Mas, contrariamente ao que afirma a teoria da expressão, “Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”. [26] 

Assim, pois, os dois tipos de discurso, o interior e o exterior estão em permanente relacionamento, mas com a supremacia do exterior, que é quem de fato organiza e forma a consciência. Entretanto, a palavra é sempre um ato de fala que se dirige a um interlocutor, a alguém, a um destinatário.

A palavra que procede de um interlocutor para outro varia, sofre alterações e se adapta segundo o interlocutor a quem é dirigida, sua posição social, cultural, sua proximidade ou distância em termos de grupo a que pertence etc. É desta maneira que “(...) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte”. [27]

A compreensão da palavra e de tudo aquilo que ela carrega como modificação imediata ou distante da realidade social implica, portanto, a compreensão de sua posição como meio de relacionamento interativo entre interlocutores reais, cada qual com sua postura e com um determinado peso enunciativo. A influência que se estabelece entre interlocutores é, em última instância, a influência sobre a coletividade, constituindo-se em razão para a construção das situações reais, os contextos em que os próprios interlocutores se situam. O locutor e o ouvinte são, ambos, fundamentais para o processo de compreensão da realidade social.

Esse fato se reveste de uma importância fundamental: as relações sociais bem como a realidade contextual que as determinam estão na base da formação das consciências e das ações e reações individuais, de sua criatividade ideológica, funcionando assim como resposta às principais perguntas que pretendem compreender a própria realidade social. Ou seja, o meio social determina a estrutura da consciência e conduz a atividade mental, de modo que a resposta da consciência se dá por meio de signos adquiridos na própria relação interlocutiva.

Irene A. Machado reforça essa compreensão do individual e de sua consciência, ao estudar o pensamento de Bakhtin: “O individual, como detentor dos conteúdos de sua própria consciência, como autor de seus próprios pensamentos, como personalidade responsável por seus pensamentos e sentimentos – esse individual é puramente um fenômeno sócio-ideológico”. [28]

Resta, pois, acrescentar dois aspectos importantes para as reflexões aqui expostas: a importante questão da compreensão, de como ela se coloca e deve de fato ser vista, e a questão lingüística, de sua evolução. Sobre esta última, Bakhtin faz a seguinte afirmação: “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”. [29]

Depreende-se que as mudanças ou o progresso da língua estão em ligação direta com a vida cotidiana, com os atos de fala que se realizam no interior da sociedade, em suas diversas situações concretas. Ou seja, o espaço da comunicação social contemporânea, bem como os meios de comunicação de massa, são espaços importantes de análise dessa evolução e são, em contrapartida, indicativos das alterações sociais que se encontram em curso. Quanto ao primeiro aspecto, o da compreensão, deve-se considerar que: “A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”. [30]

A resposta da consciência ao signo é um diálogo realizado pelo indivíduo, seja para opor sua palavra como discurso interior seja nas relações com o discurso exterior, ou ainda como meio de expressão de sua forma de compreender o meio social.

Fiorin, aliando-se à compreensão como uma forma de diálogo, acrescenta que este diálogo ganha amplitude na própria dimensão da palavra: “Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro”. [31]

Mas o diálogo é também uma forma de construção de sentido e, assim, é algo que não encontra termo final, ou seja, o sentido está sempre sendo refeito, remodelado pela compreensão. Como afirma Marília Amorim a partir de um longo trabalho de pesquisa em que o pensamento bakhtiniano foi levado à prática cotidiana de uma favela no Rio de Janeiro: “Pois a compreensão, a interpretação e a explicação são, na verdade, formas de tradução e traduzir é mostrar a descontinuidade e o intervalo”. [32]

E mais, por não se esgotar e por não esgotar as possibilidades de construção de sentido, seja no diálogo e suas diversas formas, seja nos discursos sociais, a compreensão forma uma espécie de meio, uma ponte não fixa que se pode mover conforme os contextos.

Palavra e discurso de outrem

O “discurso de outrem” é a presença do outro no discurso do eu, mas é também a necessidade do outro para que o discurso do eu possa ser construído, ou melhor, praticado. Temos, assim, dois aspectos fundamentais da palavra a necessitar de compreensão, sob pena de não se poder alcançar nem o outro nem o eu. Nenhum discurso se constrói sem que a palavra do outro esteja presente e este outro é também destinatário e locutor.

O outro não é uma ficção e nem ausência; o outro não é distância ou caminho a percorrer apenas no momento dialógico possível. O outro é texto e contexto, tema e motivo, razão e sentido.

Sob essa noção, pode-se partir para a busca da solução, ou seja, a compreensão do discurso formulado por outrem, tendo por meta responder às três indagações colocadas por Bakhtin: como, do que fala e o que diz o autor do discurso. As duas primeiras questões, o como e o que, podem ser resolvidas a partir da análise do tema do discurso,  mas a apreensão plena do conteúdo do discurso só pode ser feita pela integração do outro no próprio discurso como forma de encontrá-lo “em pessoa”. Isso porque a realidade discursiva “(...) institui o locutor e o destinatário, um em relação ao outro e, a rigor, estes não existem enquanto tais antes da enunciação. É por isso que a língua não é um código e é também por isso que é inconcebível para Bakhtin isolar o “contato” como um fator entre outros: o enunciado é por inteiro contato...”. [33]

Encontrar o outro no discurso significa apreender o tema e o contexto das relações sociais, o lugar de fala com sua força influenciadora do discurso, não se podendo perder de vista que “a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes.” [34]

Em sua análise do outro na pesquisa das Ciências Humanas, Marília Amorim busca resolver problemas que mais à frente vai enfrentar em seu trabalho de campo, elencando as seguintes perguntas: “Como encontrar o outro, como fazê-lo falar, como se fazer ouvir, como compreendê-lo, como traduzi-lo, como influenciá-lo ou como deixar-se influenciar por ele... Na maior parte dos casos, a resposta a essas perguntas aparece lá onde não se espera, lá onde não há nenhum método. Como se a dessemelhança devesse sempre se confirmar, como se o equívoco fosse a regra e o diálogo um puro acaso”. [35]

As perguntas são de fato uma ênfase na direção desse outro que parece se desvanecer na prática, mas que está de fato ali presente à espera de ser apreendido, à disposição para o diálogo em situação alteritária. As perguntas são também uma estratégia metodológica estabelecida com antecipação e sob a consciência de que alteridade e dialogismo são caminhos que se encontram e prosseguem juntos.

Neste ponto, convém trazer para este texto os quatro aspectos que Diana L. P. de Barros considera presentes na concepção de dialogismo de Bakhtin, porque se mostram importantes em relação ao discurso de outrem:

“a – a interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem (Bakhtin vai mais longe do que os lingüistas saussurianos, pois considera não apenas que a linguagem é fundamental para a comunicação, mas que a interação dos interlocutores funda a linguagem);

b – o sentido do texto e a significação das palavras dependem da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação dos textos;

c – a intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto;

d – as observações feitas podem conduzir a conclusões equivocadas sobre a concepção bakhtiniana de sujeito, considerando-a “individualista” ou “subjetivista”. Na verdade Bakhtin aponta dois tipos de sociabilidade: a relação entre sujeitos (entre os interlocutores que interagem) e a dos sujeitos com a sociedade”. [36]

O discurso de outrem contém, assim, o sujeito que discursa, mas não simplesmente o sujeito que escreve ou fala, e seu tema; contém o sujeito constituído, produto e produtor da linguagem, o indivíduo em um dado contexto socialmente organizado, com uma consciência em certa medida estruturada pela palavra exterior. Por isso, o autor russo vai estabelecer, como meio de reforçar sua argumentação, as seguintes questões: “Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência, que se exprime por meio do discurso interior? Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida? Encontramos objetivamente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece esse problema”. [37]

O que importa aqui, essencialmente, é fazer ver que a construção do discurso se dá sob a influência de “forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso” [38], o que, portanto, coloca no discurso os próprios instrumentos capazes de decodificá-lo semioticamente. As formas do discurso estão, assim, em relação com a linguagem comum, socialmente consensada, dos falantes, e estão contidas numa estrutura que integra o falante e o interlocutor.

Por outro lado, o discurso de outrem é recebido e apreendido pela consciência e se reproduz através de um outro discurso, o discurso interior, mediante o qual o receptor desenvolve sua crítica, sua apreciação. O discurso exterior se funde ao discurso interior para produzir uma terceira palavra, um outro discurso. Conforme assevera Bakhtin, “a palavra vai à palavra. É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante”. [39]

Finalizando, estes aspectos gerais do pensamento bakhtiniano fornecem, assim, uma base teórica como ponto de partida para a análise dos mais diversos diálogos, das palavras e seu emprego nos meios de comunicação de massa, a fim de inferir de alguma maneira mudanças culturais no interior da sociedade globalizada. Ao afirmar que “a palavra, como fenômeno ideológico por excelência, está em evolução constante e reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais” [40] o autor fornece uma indicação interessante das possibilidades amplas que a palavra oferece para uma compreensão do homem e da sociedade, sempre colocando esta palavra na condição de “expressão da comunicação social, da interação social de personalidades definidas, de produtores” [41]. Reconhece ele que há vários caminhos pelos quais se pode estudar a evolução da palavra, dentro da percepção de que “o destino da palavra é o da sociedade que fala” [42], uma vez que palavra e sociedade evoluem juntamente com a palavra, em perfeito acordo, em simbiose plena. Pode-se estudá-la, portanto, através da sua “evolução semântica, isto é, a história da ideologia no sentido exato do termo; a história do conhecimento, isto é, a evolução da verdade, uma vez que a verdade só é eterna enquanto evolução eterna da verdade; a história da literatura, como evolução da verdade na arte”. [43]

Ao lado desses caminhos, o autor coloca outro a que atribui uma importância de valor igual aos anteriores, a ser percorrido em conjunto com os demais: “...é o estudo da evolução da própria língua como material ideológico, como meio onde se reflete ideologicamente a existência, uma vez que a reflexão da refração da existência na consciência humana só se efetua na palavra e através dela”. [44]

Com a palavra, pois, a própria palavra: a palavra da consciência ou personalidade integrada ao seu meio social organizado, de cujo lugar produz seus atos de fala e dá sentido à vida.

Notas

  1. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 37.
  2. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 32.
  3. Ducrot e Todorov, in O pesquisador e seu outro, p. 102.
  4. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 33.
  5. Ducrot e Todorov, in O pesquisador e seu outro, p. 102.
  6. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 32.
  7. Idem.
  8. Ibdem.
  9. Ibdem, p. 33.
  10. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 33.
  11. Idem, p. 33.
  12. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 34.
  13. Idem, p. 33.
  14. Idem, ibdem, p. 35.
  15. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 189.
  16. Idem, p. 35.
  17. Idem, ibdem, p. 36.
  18. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 36.
  19. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 37.
  20. Idem.
  21. Ibdem, p. 38.
  22. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 41.
  23. Idem, p. 42.
  24. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 42.
  25. Idem, p. 103.
  26. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 112.
  27. Idem, p. 113.
  28. Irene A. Machado, in Bakhtin, dialogismo de sentido, p. 148.
  29. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 124.
  30. Mikahil Bakhtin, Marxisimo e filosofia da linguagem, p. 132.
  31. José Luiz Fiorin, in Bakhtin, dialogismo de sentido, p. 231.
  32. Marília Amorim, O pesquisador e seu outro, p. 18.
  33. Teodoro Todorov in O pesquisador e seu outro, p. 142.
  34. Mikahil Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 147.
  35. Marília Amorim, O pesquisador e seu outro, p. 31.
  36. Diana L. P. de Barros in Bakhtin, dialogismo e construção de sentido, p. 30.
  37. Mikahil Bakhtin, Marxismo e folosofia da linguagem, p. 146.
  38. Idem.
  39. Ibdem, p. 147.
  40. Mikahil Bakhtin, Marxismo e fioosofia da linguagem, p. 194.
  41. Idem,  p. 188.
  42. Ibdem, p. 194.
  43. Idem, ibdem.
  44. Idem, ibdem.

Referências bibliográficas

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro – Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo, Musa Editora, 2001.

BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 8ª, Hucitex, 1997.

BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, Unicamp,
2001.

DUCROT, O. & TODOROV, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem.
São Paulo, Perspectiva, 1998.

Document Actions
Wilson Garcia é jornalista, publicitário, escritor e editor, mestre em Comunicação e Mercado e especialista em Comunicação Jornalística, ambos pela Faculdade Cásper Líbero, atuando também como professor da Escola Superior de Secretariado de Pernambuco e do Curso de Especialização em Administração com ênfase em Marketing da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Entre seus mais de 25 livros publicados está Imprensa na Berlinda (2005), em co-autoria com Norma Alcântara e Manoel Chaparro.

Contato: [email protected]
</P
O Fórum Pluricom é um espaço aberto, onde a pluralidade de idéias é um de seus componentes fundamentais. As opiniões aqui expressas são de total responsabilidade de seus autores, não recebendo por parte da Pluricom nenhuma edição ou acréscimo.

pluricom_fb

cadastre-se.gif

Twitter Pluricom