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Pois que morra a gramática

Jan 16, 2015

Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, jornalista Carlos Sandano faz uma análise sobre a questão do preconceito linguístico no país e, em especial, na mídia.

Em passagem deliciosa de Emília no país da gramática, Monteiro Lobato registra, na voz de Dona Benta, que a gramática “é uma criada da língua e não uma dona”. O dono da língua, continua a personagem, “somos nós, o povo; e a gramática – o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar”. Declaração ainda mais clara de quem manda é o uso e não a regra está na reação de Pedrinho ao que tem a fazer à gramática se todos nós começarmos a misturar o tu e o você: “pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas”.

Questionar verdades inquestionáveis pode ser útil em um momento em que temos variados exemplos de diferenciação na aplicação das regras. Juízes chegando atrasados para voar e deputados que ameaçam colegas de estupro parecem reafirmar famoso adágio “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, mesmo em tempos de grandes executivos frequentando as instalações policiais de Brasília.

Mas o que isso tem a ver com a gramática? Retomemos um caso peculiar já antigo, de 2011, para ver como as regras podem ser problemáticas quanto inflexíveis. Naquele ano, o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA) do Ministério da Educação comprou e distribuiu livro Por uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, para 484.195 estudantes de 4.236 escolas brasileiras. Diversos jornalistas – Clóvis Rossi, Dora Kremer, Augusto Nunes e Alexandre Garcia, entre eles – logo se manifestaram contra o livro. Ou, mais especificamente, contra uma afirmação que fazia a autora: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’’. Claro que pode”. 

Isso bastou para tornar Heloisa Ramos uma “pedagoga da ignorância” e Fernando Haddad, então ministro da Cultura, um sujeito que desperdiça dinheiro público e emburrece nossos jovens. Mas era outra coisa que propunha o Por uma Vida Melhor, de acordo com as mais recentes e consolidadas pesquisas no campo da Linguística: ressaltar a importância da norma culta não significa desprezar as demais variações linguísticas. Antes que as críticas enveredem para o campo da ideologia política, vejamos o que isso significa.

Primeiro ponto: normas gramaticais não são valores absolutos, pois como tudo que é humano fazem parte de realidades complexas, diversificadas e contraditórias. A gramática está aí para colocar ordem na maneira como expressamos nossos sentimentos e ideias. É claro não se vai validar todo capricho linguístico, mas, como deixa claro o genial filólogo português Rodrigues Lapa, “não vamos também, em nome deste princípio, deixar de reconhecer os direitos do espírito criador e a beleza sugestiva de certas liberdades”.  

Segundo: ao se constituir em imposição que restringe a variedade linguística, o domínio da norma culta é um sinal de prestígio que nem sempre se traduz em algo efetivo. É claro que se espera, com razão, o domínio da norma culta entre aqueles que escrevem para os jornais e frequentam a Universidade – o que, infelizmente, não é tão frequente como deveria. Mas aqueles que buscam na norma culta uma ferramenta, por exemplo, de ascensão social não necessariamente irão ter sucesso. Caso isso fosse verdade, professores de português estariam entre os profissionais mais bem pagos do país.  

Claro que a universalização do acesso à norma culta deve ser algo desejado e trabalhado – e, igualmente, desejamos melhores salários não só aos que ministram as disciplinas de letras, mas a todos os professores. Mas isso não deve significar excluir como primitivo, ignorante, todas as demais variantes da língua portuguesa, estigmatizando os falares que utilizam concordâncias diferentes. 

Isto porque o terceiro ponto está em que desvios da norma culta, quando praticados por determinada classe social, passam despercebidos. Exemplo: A variante linguística que ignora a regra de colocação pronominal é comum na fala dos grupos sociais brasileiros mais escolarizados, segundo trabalho das professoras Dinah Callou, Eugenia Duarte e Célia Lopes, da UFRJ. Então se pergunta: objetivamente qual a diferença entre o desvio da concordância verbal/nominal e o da colocação pronominal? Só encontraremos diferença na classe social de quem os pratica. Portanto, são valores sociais e culturais e não uma verdade objetiva que estigmatizam algumas variedades linguísticas.

Lembrar que existe algo chamado de preconceito linguístico não é coisa de esquerdista e nem “celebração da ignorância”. Apenas que o assunto é muito mais interessante quando escapamos das simplificações e, no lugar de restringir nosso horizonte a um conjunto de regras rígidas, nos voltamos para a rica diversidade do “português brasileiro”. Rodrigues Lapa vai ainda mais longe: “no dia em que atingíssemos o ideal (impossível) de uma língua perfeita, dissecada, sem exceções, teríamos matado a Arte”. 

Pois então, “morrer por morrer, que morra antes a Gramática”. Ou, como diria Pedrinho, se é para acabar com a variedade, que a dona Gramática coloque o rabo entre as pernas e murche a orelha.  

 Artigo publicado originalmente no jornal O Dia, em 23/12/2014

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Carlos Sandano é jornalista profissional desde 1994, especialista em Teorias da Comunicação, mestre em Integração da América Latina e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, onde é professor do curso de especialização em Marketing Político e Propaganda Eleitoral. É também docente no curso de Jornalismo da Universidade Mackenzie, na área de comunicação digital e novas mídias. Atua especialmente na redação e edição de produtos de comunicação e coordenação de mídias digitais em campanhas eleitorais. Contato: [email protected]

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